Dace Biorebu, 77

Munduruku

Homenagem escrita po Honésio Dace Munduruku, filho de Dace Biorebu.


Dace Biorebu, como era conhecido por Arcelino Dace Munduruku em língua
portuguesa, foi um dos últimos sábios que carregava no seu acervo mnemônico, séries de conhecimentos de seus ancestrais. Os munduruku de seus contemporâneos eram indivíduos que dominavam conhecimentos de variados aspectos e entendiam por essência tudo sobre a respeito da cosmologia, são pessoas muito ligadas às crendices, nas suas concepções acreditam que o ser humano é reencarnado na figura de animais logo após a morte, esse tipo de crença é o ponto mais forte e dominante à geração do Arcelino.

Os Munduruku dessa geração são considerados últimos sábios, porque eles dominavam como dito, diversos conhecimentos que eram restritos aos mais jovens, eles adquiriram saber devido a forma como foram criados, seus pais os preparavam desde cedo para ter capacidade de aprender conforme aos moldes tradicionais.

A forma de ensinamento dos jovens munduruku daquela época era muito forte aos costumes e tradição dos ancestrais, e todos jovens eram ensinados na “Uksa”, um tipo de casa de guerreiros, onde os ensinamentos eram transmitidos oralmente pelos mais velhos aos mais novos sobre cosmologia, arte, história, e sobre diversos tipos de conhecimentos, “uksa” era o lugar exclusivo para homens, as mulheres eram proibidas a entrar e nem podiam ter acesso sob pena de castigo pelos espíritos da natureza.

Essa base de aprendizagem, que tornava os munduruku primitivos sábios em qualquer tipo de assunto relacionado à cultura, arte, forma de organização, agricultura, caça, pesca, conhecimento sobre remédios tradicionais, xamanismo, crença e assuntos de defesa etc. Assim, os munduruku que antecederam a geração atual eram sábios, mas cada um tinha sua especificidade, como exemplo disso, Arcelino tinha conhecimento sobre diversos temas, como pintura, cântico, instrumentos musicas, histórias, mas sua especialidade era artesanato e como puxador.

De acordo com suposição dos mais velhos, conforme o tempo foi passando, o povo munduruku foi mantendo contato com os “brancos”, e isso influenciou os mais jovens a não terem ligação amigável com a natureza primitiva, e assim estão praticamente perdendo essência e habilidades em resgates daqueles conhecimentos práticos que os mais antigos possuíam, com se não bastasse, ultimamente o povo munduruku está perdendo os valiosos sábios por conta da epidemia que veio assolar de forma desastrosa nas aldeias do Médio Tapajós e no Alto Tapajós, bem como em diversas regiões do Brasil.

Arcelino, nasceu no dia 20 de julho de 1942, na região do Rio Cururu, filho de Timóteo Dace Munduruku e Celina Saw Munduruku, eram uns dos últimos Munduruku que ainda habitavam região de savana, o que em certo período foram atraídos pelos franciscanos a morar às margens dos rios. Como exemplo disso, a aldeia Missão Cururu, inclusive o próprio Arcelino em sua adolescência participara em convento dos Freis que se localizava na aldeia Missão Cururu, o objetivo da assistência do convento era que os jovens munduruku pudessem aprender “boas novas” do evangelho e ainda mesmo que discretamente, eles pudessem adquirir novas culturas até vistas pelos padres como decentes.

Ele pertencente ao clã “esbranquiçado”, linhagem de “Dace” que significa em português “harpia” ou “gavião-real”, espécie de maior águia da Amazônia. Seus pais, segundo seu relato quando ainda em vida, eram Munduruku que não usavam calçados, caçavam com arcos e não falavam português, usavam vestimentas tradicionais.

A saga começou para Arcelino na época em que pele de animais estava no auge entre mercadores e regatões na região da TI Mundurukânia, muitos comerciantes faziam trocas e compras desses produtos com os Munduruku. E de igual forma, extração de borracha e de caucho também estavam movimentando muito os comerciantes aventureiros.

Sua saída da região do Cururu foi motivada por esse advento comercial da época, assim ele teve seus primeiros contatos com outras aldeias localizadas durante a extensão da região do Kaburua e demais regiões da savana. Durante sua juventude ele conheceu Kaba Remug’u͂ m (In memória), que tinha por nome em português Luzia Kaba Munduruku, que era do clã “avermelhado”, que tinha como sub-clã “kaba”, denominação dado à espécie de papagaio. Com ela, Arcelino construiu família e tiveram os primeiros filhos. Nessa época, eles moraram na aldeia Kaburua. Já em meado à década de 70, o mesmo foi morar na aldeia Katon, nessa aldeia tiveram mais filhos totalizando 8 filhos, dentre os quais 5 homens e 3 mulheres.

Ainda na década de 70, Arcelino teve participação indireta na tradução da Bíblia do Novo Testamento em munduruku, denominada de “Deus ekawentup Kawen iisuat”, esse trabalho era da Missão Igreja Batista com apoio de Summer Institute of Linguistics – SIL, ainda atualmente localizada na aldeia Sai-Cinza. Sua colaboração neste trabalho evangelístico foi ajudar a traduzir termos bíblicos a partir do ponto de vista linguístico da língua munduruku.

Arcelino, era “letrado” em língua munduruku, conhecia léxicos, termos, palavreados, sinônimos, metáforas e diversos recursos linguísticos de ângulos diferentes no sentido de pronúncia e de significados. Sua colaboração, era instigar determinados termos bíblicos que tinham sentidos e significados oblíquos, pois para compreensão do munduruku, as palavras têm que ser ditas e pronunciadas de forma precisa para não causar ambiguidade.

No conhecimento de semântica munduruku, ainda que analfabeto, Arcelino era culto, em sua conversa ou quando decidia explicar algo, ele utilizava diversas palavras e frases para explicar o mesmo sentido, sempre tinha atenção em vários ângulos discursivos. Foi devido a esse talento que a Margareth (americana) o chamou para ajudar na tradução indireta da Bíblia do Novo Testamento.

Durante o trabalho, ele estivera em algumas capitais, como Belém e Cuiabá, inclusive, algumas pessoas que gostavam de brincar com ele o apelidaram por isso de “Cuiabá”, isso porque em todos seus relatos o mesmo costumava falar sobre sua viagem em Cuiabá. Em um dos relatos marcantes do mesmo, que segundo ele, na feira de Cuiabá o mesmo conheceu grupo de pessoas que tinham papo igual algumas aves, ele comparava essas pessoas com arara que também tem papo, ao invés de ter estômago.

Na década de 90, Arcelino foi um dos grandes garimpeiros que movimentou a região de Katon, muitos de seus conterrâneos e de outras regiões trabalharam com ele numa espécie de garimpo que era feito manualmente. Houve muita correria, vindas de pessoas de outros lugares em busca de ouro. O mesmo, era conhecido como explorador exímio de garimpo, havia época, principalmente após o período de broca e plantação de roça, ele saía em busca de encontrar garimpo, geralmente, quando encontrava, distribuía entre pessoas que o procuravam, isso sem exigir porcentagem.

Mas, o mesmo não levou adiante esse dom, segundo ele, isso não trazia beneficio para ele e para sua família, apesar de que havia muita gente trabalhando à sua custa, e decidiu parar, visando cuidar de sua família conforme tradição munduruku.

Desde a sua juventude, ele foi homem trabalhador, sua principal atividade era roça para suprir a família, plantava muito maniva, macaxeira, cana-de-açúcar, cará, cará-açu, batata, variadas espécies de bananas. Por onde passava, costumava plantar diversas espécies de plantas, como laranjeiras, abacateiro, cacau, açaí, manga, lima, gostava de plantar fruteiros de espécies raras e bem como remédios tradicionais.

Também foi, um dos grandes caçadores, mas diferente de seus pais, o mesmo usava espingardas, era exímio atirador com rifle 22 e cartucheira 28. Gostava de caçar pacas à noite de canoa, andava com sua inseparável esposa, ela era seu piloto na polpa da canoa. De dia caçava macacos, araras e demais caças maiores, apesar de que viveu na região escassa de caças. Ele costumava curar cachorro para ser bons caçadores de cotias e pacas, e adorava caçar com cão de dia. Conhecia como ninguém a floresta, o mato, veredas, riachos e espécies de plantas silvestres, inclusive, costumava coletar frutos silvestres.

Arcelino, sabia como pegar peixe, ao menos para alimentar a família, num lugar onde os peixes eram muito escassos. Pescava de caniço, com linha e até mesmo com tradicional uso de timbó, seu principal pescado eram aqueles peixes lisos, como mandí, mandubé, surubin, porque para ele esses peixes não tinham espinhas e assim eram alimentos apropriados para crianças. Era homem incansável, de dia trabalhava na roça, ao entardecer saía para pescar com a companhia de sua esposa. Sabia prover a necessidade, quando acabava açúcar, fazia café com garapa de cana-de-açúcar, não demonstrava moleza, mas era espécie de homem e pai tradicional à moda de seus ancestrais, rígido e exigente.

Certa vez, quando ainda tinha uns trinta anos de idade, ele quase perde um filho que ficou doente por dismitidura, inflamação de junta devido à queda. Na época, o mesmo estava num lugar que não tinha pessoas, por isso, não tinha como procurar puxadores conhecidos da época. Então, de acordo com seu relato, ele ficou desesperado ao vero estado em que seu filho se encontrava.

Assim, ao dormir, teve uma visão por meio de sonho, no qual o calango veio até ele para pedir que ele puxasse o filhote que estava morrendo de dismitidura, segundo Arcelino, ele aceitou e puxou, e logo o filhote de calango ficou sarado, então, o calango falou para o mesmo que ele era um bom puxador e lhe agradeceu. Quando acordou, segundo ele, teve ideia de puxar o filho doente lembrando o que o calango havia lhe dito num sonho, e aconteceu que deu certo, o filho moribundo ficou sarado.

Desde então, ele passou a acreditar em sonhos, Arcelino como seus ancestrais, era homem que levava a sério todos os seus sonhos, para ele, todos os sonhos tem significados, eles premeditam algo ruim e algo bom. Por isso, qualquer atividade que requer cuidado como caça, pesca, precisa ser planejada, qualquer andança no mato, precisa de cuidados redobrados, porque lá há cobras, animais peçonhentos e tocos de pequenas plantas que podem machucar.

Caso sonhar algo negativo, que premedita algo ruim, Arcelino costumava fazer um tipo de ritual ou tipo de “cura”, espécie de oração conhecidos tradicionalmente. Para desviar a cobrar, ele costumava pegar lenha acesa e passar entre as pernas, que segundo ele isso desvia a cobra do seu caminho, às vezes, ele fazia passar por entre a corda de arco que também tem efeito semelhante.

Ele era o grande conhecedor de plantas medicinais, na época não havia praticamente o acesso aos medicamentos da medicina ocidental. Então, muitas doenças comuns eram tratadas com medicamentos tradicionais, tais como gripe, diarreia, coceiras, febre, inflamação e entre outras. E da mesma forma, ele conhecia muito bem, os remédios que servia para tratar diversos tipos de problemas patológicos em crianças, como hemorroida e outras.

Sabia, fazer tratamento para crianças que tinham dificuldades em aprender a falar e andar. É comum entre munduruku a crença de que há certos alimentos que não podem ser consumidos pelos pais enquanto a criança é recém-nascida, ela pode ocorrer anomalia fisicamente ou tornar-se doente para esse tipo de problema, ele tinha conhecimento de plantas medicinais de origem vegetal e animal para tratar.

Para ele, ao redor da gente, há inúmeras criaturas malignas que podem machucar as pessoas ou até mesmo matar, segundo ele, o boto é a pior espécie de animais que tem poder sobrenatural, quando em transe ele se transforma em criatura maligna, tem semelhança entre “joropari”, criatura maligna invisível a olho nu, esse pode matar qualquer pessoa quando se cruzar num caminho, que geralmente anda nas altas horas da noite, geralmente seu ataque é fatal.

Há também, segundo Arcelino, criatura sobrenatural “axik”, espécie de espírito de criança, que costuma matar somente crianças, e por isso, há algum tipo de “remédio” de prevenção. Arcelino era exímio artesão, fazia pulseiras e colares com madeiras brutas, coco de tucumã e osso de boi. Dentre as artes, ele fazia por vezes, uma espécie de miniatura de boneco com certo tipo de madeira específica, esse era de utilidade para criança, o qual, segundo ele, podia desviar atenção de “axik” que é atraída pela criança. Por isso segundo recomendava “não ande com criança de noite no meio do caminho e nem fique passeando nas casas alheias”.

Ele não era pajé, e sim era puxador, que aos poucos foi se aprimorando até ser reconhecido como melhor puxador no Alto Tapajós. De acordo com ele, aos poucos foi perdendo habilidade devido à inveja de outros, que inclusive jogaram “kawxi” no seu braço para prejudicá-lo, deixando-o sem força. Assim, com tempo ficou sem força para puxar adultos. Mas mesmo assim, logo após desse episódio ele se tornou um grande puxador de crianças, o mesmo ajudou muitas crianças e adultos doentes a se curarem de traumas e de dismitiduras. Seu desejo era que um dos filhos aprendesse também a puxar, dentre os oito filhos, apenas um demonstrou afinidade, no caso uma filha chamada Eliana.

Na questão de conhecimento de história e lutas épicas do povo munduruku, guerras e conflitos entre outros indígenas, ele tinha um grande acervo, que é inacreditável, podia passar uma noite contando histórias, não acabava seu repertório. Conhecia muitas palavras antigas que geração de hoje não reconhece. Sabia e reconhecia vários alimentos e iguarias dos tempos remotos. Sabia contar seu sonho por detalhes no dia seguinte, isso porque, segundo ele, não bebia água do fundo do igarapé, ele respeitava tudo que seus pais o aconselhava.

Todos os filhos cresceram “curados” com tipo de remédio tradicional, porque seu desejo maior era de que eles fossem alguém na vida, nos estudos, ele queria muito que seus filhos aprendessem a falar português e saber de algo importante, segundo sua visão. Ele queria que alguém aprendesse a tocar instrumento, e assim comprou uma vez um violão, pois desejava que seu filho se tornasse um músico.

Arcelino saiu da aldeia Katon no final do primeiro semestre de 1996. Isso, porque sua esposa havia sido diagnosticada com tuberculose e precisava urgente de tratamento e, naquela ocasião, o município de Jacareacanga não tinha suporte para esse tipo de tratamento. Assim ele ficou algum tempo em Sai-Cinza, onde no primeiro momento recorreu aos pajés, conforme agravação do caso, foi para Jacareacanga e de lá decidiu de vez ir para cidade de Itaituba-PA. Vendeu sua espingarda calibre 22 que tinha para custear sua passagem, assim, em 1999, ele chegou em Itaituba, onde passou alguns dias morando no bairro da Liberdade na casa da parente de sua esposa, a saudosa Iporo Buyat’um, e logo após indo para Pimental onde na época morava sua filha Diana.

Como na comunidade de Pimental não tinha lugar suficiente para seu plantio, ele resolveu morar por um tempo numa comunidade chamada de Parana Mirin, no sítio da saudosa Iporo Buyat’um passou quase um ano, e como não deu certo também, em 2001, ele procurou lugar na aldeia Praia do Mangue, onde morava seu cunhado João Kaba. Passado alguns dias, Amancio Ikon (in memoria) concedeu lugar para ele morar na aldeia Praia do Mangue. Então, o mesmo começou a fazer roça, que logo mais tarde tornaria um espaço onde seus familiares logo depois da chegada também vieram para morar.

No inicio, Arcelino plantou inúmeros pés de plantas, mas a maioria não deu certo, só ficaram as plantas comuns. Construiu lar, os filhos cresceram, casaram-se, e aumentaram os netos, e hoje o pequeno espaço que fica na aldeia Praia do Mangue, tem o suor e o trabalho do homem humilde e trabalhador.

Logo que as pessoas começaram a ter conhecimento a respeito dele no Médio Tapajós, ele ficou conhecido e reconhecido como um dos melhores puxadores e artesão. Ele ajudou muita gente, quando ainda estava sadio no sentido de saúde, muitas pessoas o procuravam, tanto indígenas, quanto brancos, pessoas dismitidas, pernas, costas, braços machucados ou das vezes quebrados. E da mesma forma, ele era muito procurado pelos turistas devido a seu artesanato, Arcelino fazia pulseiras e colares muito lindos, e isso fez com que ele ficasse conhecido no Médio Tapajós.

Ele foi homem bastante trabalhador, só parou de trabalhar na roça logo que sua esposa faleceu em 2017. No início de maio, ele iniciou complicações do problema de saúde, que era cálculo biliar, conhecido como pedra na vesícula, durante crises foi levado para emergência do hospital de Itaituba-PA três vezes, provavelmente durante essas idas, o mesmo foi infectado pelo covid-19, inclusive, antes do seu falecimento testou positivo para Covid-19.

Arcelino Dace Munduruku, faleceu no dia 03 de junho de 2020 pela manhã, levando o legado adquirido durante sua trajetória em vida que ninguém e nem seus filhos herdaram. Mas, o seu legado deixado é o exemplo de homem humilde, trabalhador e honesto, e isso pelo menos são qualidades mais fáceis que serão lembradas eternamente.

FONTES

Foto em Destaque: Honésio Dace Munduruku 

Fotos da Galeria: Honésio Dace Munduruku 

 

Mediação: Luciana França (Antropologia, UFOPA – Santarém/ PA)