Poani Higino Tenório, 65

Tuyuka

Raoni Valle: Professor do Programa de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), Santarém – PA.


O Prof. Poani Higino Pimentel Tenório é um ser dinâmico e polivalente, agregador de diversidades, por isso mesmo, interessou-se também pela Arqueologia, em particular pelos petróglifos. Para os povos Indígenas do Alto Rio Negro, os petróglifos são importantes marcadores e agentes da história, memória e de conhecimentos que interconectam mundos, seres e tempos. Mas o Mestre Higino, fustigado pela curiosidade dos cientistas e dos Kumuã, buscou conhecer a forma peculiar como os (as) arqueólogos (as) não-indígenas se interessavam e estudavam os desenhos e inscrições nas pedras, fotografando, classificando e publicando suas ideias. Isto é, registrando e dando nomes que identificavam formas e lugares, tais como antropomorfo (forma de gente) e zoomorfo (forma de bicho), e criando narrativas sobre povos, culturas, territórios e épocas a partir dessas classificações. Intrigavam-lhe certas aproximações arqueológicas que tratavam as gravuras rupestres (outro nome para os desenhos) como coisa do passado antigo; como coisa feita por gente que já morreu; ou como uma coisa ou uma língua morta. Essas três noções em torno de uma ideia de passado morto, que não se efetiva no presente, foram veementemente rejeitadas pelo Mestre logo no início de nossas rusgas interepistêmicas, mais de 10 anos atrás, pelo menos.

Outro desconforto seu relacionava-se propriamente à classificação das formas, que o Mestre considerava simplória demais e insistia que não víamos por completo, que só víamos os pedaços, que chamar waimahsã de zoomorfo e kahpimahsã de antropomorfo revelava uma profunda desinteligência, um despedaçamento do conhecimento. Insistia que nossas classificações não conseguiam ver, ler, falar sobre a essência completa desses seres, pois só víamos figuras, desenhos, feitos por outras pessoas que morreram há centenas ou milhares de anos antes do presente. Higino Pimentel considerava tudo isso uma grave limitação, uma miopia na visão, no pensamento, que ficavam evidentes pelas perguntas infantis formuladas e respostas parciais que não alcançavam a complexidade da percepção dos Kumuã. Basicamente, Higino Tenório, como Kiti Masigʉ e Kumu, via e sentia as formas vivas, na sua integridade e fluidez orgânica de seres vivos em seus ecossistemas interconectados. Os petróglifos, portanto, constituem-se como ecossistemas vivos, integrados aos lugares, seres e mentes humanas e não-humanas. Formam uma rede neural ecologicamente estendida, tal é a filosofia da mente Kumuã. Foi isso que o mestre ensinou para a arqueologia Amazônica e Brasileira, sobre a vida cognitiva, social e espiritual da arte rupestre e dos lugares sagrados, ʉtã hori wametise.

Essa aprendizagem foi tão importante que o Mestre foi convidado a compartilhar seu conhecimento com a Associação Brasileira de Arte Rupestre (ABAR) em 2018, que estupefata pela “tapa na cara com luva de pelica” muito honesta, ética e decolonizante, rendeu todas as homenagens e reconhecimentos ao Mestre Higino pelo seu notório e impressionante saber em relação ao tema, e o convidou para integrar a Associação na qualidade de importante pesquisador Indígena de arte rupestre no Brasil e membro honorário da Abar, junto com ele também foi reconhecido o prof. Jairo Saw Munduruku, não menos importante, tratando-se, pois de uma guinada epistemológica radical e ampla de reconhecimento da importância científica das pesquisas e pesquisadores Indígenas. Com isso, o Higino também se tornou o principal responsável pelo início do processo de decolonização epistemológica deste campo dos estudos da história Indígena no Brasil.

O impacto meteórico que o Mestre Higino representou para os estudos arqueológicos da arte rupestre aqui é irreversível e divisor de águas, tendo sido também internacionalmente reconhecido em grandes eventos científicos da IFRAO (Federação Internacional das Organizações de Arte Rupestre) que agregam a comunidade global de cientistas do tema. Nesta divisão de águas, rochas e seres, ele provocou um encontro das gravuras arqueológicas com a cultura de respeito, Heõpeo Masise, e por sua influência direta e legado, nossa academia, ainda muito branca e ocidental, foi convidada a se repensar e pensar junto com os povos Indígenas sobre a abertura de horizontes anti-coloniais na produção de conhecimentos, que marcam decisivamente este momento da história das transformações desta disciplina em nosso país e na América Latina.

Este é apenas um fragmento do legado deste homem extraordinário, que me adotou epistemologicamente por um período de tempo, em certa medida, e com orgulho reconheço que fui um de seus discípulos, embora não-indígena e dos menos responsivos. Dito isto, sempre honrarei a sua memória. Mestre, descanse em paz junto aos ancestrais Ʉtapinopona, você vai continuar iluminando e inspirando gerações de pesquisadores Indígenas e não-Indígenas.

 

Nota de Pesar da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN)


Higino Pimentel Tenório, liderança tuyuka do Alto Rio Negro, faleceu ontem em Manaus (18/06), às 23.30h. Esse homem, marido de D. Amélia tukano e pai de oito filhos, era um profundo conhecedor de sua cultura e articulador estratégico para garantir a perpetuação do pensamento indígena. Mestre das relações com o mundo exterior, trouxe os mais diversos pesquisadores – antropólogos, matemáticos, linguistas, educadores, arqueólogos, biólogos – para construir um modelo inovador de educação indígena no Alto rio Tiquié e depois se tornou consultor especialista do assunto. Higino também contribuiu muito com o movimento indígena – notadamente com a FOIRN e outras organizações da Amazônia – para defender a resistência ao modelo hegemônico de desenvolvimento predatório da Amazônia. Fez viagens nacionais e internacionais como porta-voz dos povos do Rio Negro no debate sobre educação diferenciada, mudanças climáticas, dentre outros temas.

Higino demonstrava uma mente brilhante que sabia caminhar por diferentes mundos. Embora tenha estudado somente o magistério, Higino foi professor de muitos doutores! Esteve diretamente envolvido com a elaboração de algumas teses da antropologia e convidado como interlocutor de eventos acadêmicos dessa área. Higino também contribuiu muito com a arqueologia, como coautor de artigos, coorientador de pesquisas interculturais da UFAM e consultor de projetos de grande porte coordenados por renomados pesquisadores da arqueologia de diferentes instituições. Recentemente, foi reconhecido em âmbito nacional como membro honorário da Sociedade Brasileira de Arte Rupestre e internacionalmente como o primeiro pesquisador indígena de arte rupestre no Brasil, pela IFRAO.

Higino era, em suma, um diplomata do Rio Negro que soube refletir os desafios do mundo contemporâneo a partir da perspectiva indígena. Era um entusiasta de ideias inovadoras que valorizassem a profundidade dos conhecimentos cosmológicos. Ele deixou um legado enorme para uma ampla rede de pessoas interessadas na Amazônia e será sempre uma fonte de inspiração para jovens e pesquisadores do Rio Negro.

Sua contribuição é fundamental para uma ampla rede de pessoas interessadas na Amazônia e deixou um legado enorme para jovens e pesquisadores que o tinham como fonte de inspiração.

HIGINO TUYUKA! PRESENTE SEMPRE!

(Colaborou: Lorena França)

 

Daiara Figueroa


Hoje nossa família perde mais um gigante,  nosso querido professor Poani Higino Tenorio, do povo Tuyuka – Uhta Pirõ Porã, grande mestre de cerimônia bayá,  grande rezador kumu,  doutor de saber,  historiador,  defensor de nossa cultura…. Tio Higino foi um dos pilares que não deixou nossa cultura morrer, seu legado é enorme: conhecer nossas línguas, nossa história, nossos cantos, nossas músicas,  nossos lugares sagrados, praticar nossas cerimônias, conhecer nossas medicinas…  Companheiro de luta de meu pai, Higino foi uma liderança histórica do Rio Negro, fundador da FOIRN, professor incansável na defesa das línguas e da educação indígena.  Fizemos o possível para cuidar dele, conseguimos transferir de São Gabriel para Manaus, pedimos que pudesse ter também o atendimento da medicina tradicional…  Obrigada tio por sua fé, por ter sido um amigo, professor, por todo seu trabalho… Perdão por não ter conseguido ir ao teu encontro da última vez… Agora você sobe para se encontrar com Tio Feliciano e os outros, com certeza será muito bem recebido na maloca de pedras brancas do céu. Expresso em nome de meu pai e de minha família as mais sinceras condolências a nossos familiares Tuyuka e aos amigos. Añû.

Que nossos corações possam respirar no meio a esta tempestade… Que esse pesadelo acabe, que essa doença vá embora e deixe minha família em paz.

 

Paulo Desana


Em fevereiro deste ano comecei a articular junto com o Higino Tenorio Tenorio a gravação de um novo documentário, onde eu iria assumir a direção em parceria com Mauricio Fonseca. Estávamos animados e com algumas coisas já pré-combinadas. O roteiro praticamente fechado, teria outro grande conhecedor deste mundo cosmológico da cultura Indígena, o Seu Feliciano Lana Desana. Iríamos subir o Rio até Ipanoré, Higino contando sobre a Mitologia da Cobra Canoa e o Feliciano ilustrando a grande viagem dessa Canoa da Transformação. Higino estava super animado, mandava sempre uma mensagem: “E aí Desana alguma notícia da filmagem?” E eu: “Ainda não Desana, aguardando a liberação da verba, mas vai ter”. Bem, a Covid-19 chegou destruindo tudo. Com a notícia de hoje, para mim, não está sendo fácil aceitar isso. São grandes amigos, sempre amei ouvi-los contando sobre o nosso universo Indígena, que é forte e poderoso! A visão que eles passam sobre a gente também ser natureza, deixaram muita sabedoria para todos nós indígenas. Não irei mais ver meus amigos: Higino e chamá-lo de Desana, ver ele fazer suas piadas ou brincar com determinadas situações; e seu Feliciano sempre alegre contando cheio de entusiasmo as suas histórias através de seus desenhos – me deixam em profunda tristeza. Os mestres estão em suas malocas sendo recebidos com muito Dabukuri, carpi, muito Caxiri, vai ser uma cerimônia de 5 dias de muita alegria, as mulheres soltando suas altas e maravilhosas gargalhadas. Meus amigos, um dia estarei chegando por essas bandas, enquanto isso mandem seus sopros de cigarros para nos proteger nesse mundo cheio de maldade, ganância, ira, soberba, destruição. Tenho certeza que venceremos essa guerra. Meus pêsames à família do Higino.

 

Lucia Alberta Andrade


E hoje a Covid-19 levou de nós o querido Higino Tenorio Tenorio Tuyuka. Nosso grande filósofo autodidata. Um dos homens mais inteligentes que já conheci. Ele fazia uma leitura do mundo como ninguém, relacionando os conhecimentos ancestrais com os demais conhecimentos. Nestas fotos, com várias outras pessoas queridas, estávamos sonhando alto, construindo uma proposta de um instituto de conhecimentos indígenas do Rio Negro que ainda não concretizamos. E o Higino foi um dos maiores colaboradores da proposta, nos fez ousar muito, pensar grande e quem sabe um dia chegaremos lá, e esse instituto colocará em prática o que construímos juntos, tá Higino. No final da década de 1990 ele foi meu aluno do 1º Magistério Indígena, mas na verdade, o Higino era professor de todos nós. Aprendi muito com ele! Esse sim entendia bem o que é interculturalidade.  A nossa educação escolar indígena perde um dos seus grandes idealizadores no Rio Negro, um dos fundadores da Escola Utapinopona Tuyuka, que teve grandes avanços, mas para a tristeza do próprio Higino nos últimos anos foi perdendo apoio e se enfraquecendo diante da meta para a qual foi criada.  Mas não iremos esmorecer querido Higino, continuaremos na luta pelos direitos dos povos indígenas, por você, pelos mais de 200 parentes que também foram levados por esse terrível vírus e por todos que ainda continuam entre nós. Siga seu caminho! Com certeza já deu sua contribuição por aqui e se junte aos nossos ancestrais.  Saudades eternas.

 

Elaíze Farias


Um grande conhecedor do Alto Rio Negro partiu levado pela covid-19. Higino Tuyuka, um guerreiro da educação indígena, intelectual, um gênio e pioneiro. Ajudou a decolonizar a ciência. Inspirou e ensinou muitas gerações indígenas de sua região. Muitos doutores brancos beberam de seu conhecimento. Inacreditável o impacto dessa doença nos povos indígenas. Ando sem muitas palavras já. Vai ficar na minha memória o encontro que tivemos em dezembro, quando ficamos num longo papo numa tarde de bubuia; eu numa rede, ele na outra, contando histórias e amenidades.

Higino Pimentel Tenório, liderança tuyuka do Alto Rio Negro, faleceu na cidade de Manaus, na noite do dia 18 de junho de 2020. Nossos colaboradores falam sobre esse profundo sobre esse sábio indígena.

 

Adeilson Lopes

Nosso querido Higino Tuyuka partiu essa madrugada em decorrência de complicações causadas pela Covid-19. É uma tristeza imensa para todos que puderem ter o privilégio de conviver e compartilhar ideias e sonhos com ele. Higino era gigante, dessas pessoas raras no mundo, filósofo, intérprete e tradutor de mundos. Lutou incansavelmente pela valorização da cultura e dos conhecimentos dos povos indígenas do rio Negro. E mesmo diante das maiores dificuldades nunca desistiu de acreditar em um mundo mais justo, mais diverso e de mais respeito e troca entre culturas e mundos. Que ele siga em paz e descanse depois de tanta luta.

 

Ana Maria Machado


Os povos da Amazônia perdem seus grandes conhecedores para esse inimigo invisível que veio de tão longe. Levou Feliciano Lana, exímio artista Desana. Levou Fausto Mandulão, Macuxi incansável na luta pela educação indígena de qualidade.  Hoje é dia de dor maior. Se foi nosso amigo Higino Tenorio Tuyuka. Filósofo curioso pelo mundo, genial em suas explicações, exímio conhecedor das histórias Tuyuka, grande pensador sobre a educação indígena, que sabia valorizar os conhecimentos próprios, fazendo profundas conexões com a ciência e o mundo não indígena. A Covid calou toda esse genialidade e simpatia do Higino… o dia é de luto, em pensamento só me vem sua voz inconfundível. Vou dormir escutando em mente essa voz e revisitando as lembranças belas que tenho dele, para quem sabe assim poder encontrá-lo em sonho!

 

Lorena França


Hoje (21/06/2020) o coração bate miudinho, a garganta está apertada. Foi o enterro de Higino Tenório, grande liderança tuyuka do Alto Rio Negro. Higino era uma das pessoas mais brilhantes e sensíveis que conheci. Sabia tergiversar sobre tantos e tantos assuntos! Tinha um conhecimento profundo sobre sua cosmologia e uma memória impressionante sobre os assuntos do passado: garimpo e Calha Norte dos anos 70, criação do movimento indígena e da FOIRN. Era um crítico da atuação dos salesianos e da repressão que eles causaram à cultura indígena; conhecia muito sobre as plantas e os seus possíveis modos de consumo, sobre as cerimônias e rituais tradicionais, tocador das flautas sagradas. Tinha uma mente inquieta, aguçada. Amava ler! Estava tristíssimo por ter perdido boa parte da visão ano passado. Tornou-se um defensor e especialista do ensino indígena verdadeiramente diferenciado e sua atuação foi fundamental para a revitalização da língua tuyuka.

Higino saiu do Alto rio Tiquié, na floresta profunda fronteiriça com a Colômbia, para dialogar com o mundo. E fez amigos em toda a parte, de todas as áreas de conhecimento. Tinha uma legião de fãs indígenas e não indígenas. Merecidamente

Para mim, um amigo. Um mestre, um homem sensível que conheci chorando copiosamente pela dor da perda de uma filha, que havia morrido meses antes. Foi um amor imediato que felizmente tive a oportunidade de demonstrar muitas vezes. Quando ele ia à cidade, muitas vezes me ligou do telefone da Ju Lins para conversarmos. Apoiou-me no recorte inusitado da minha tese e me ajudou a pensar algumas possibilidades. Fizemos algumas gravações de sua rica perspectiva sobre a comida e a cosmologia. Eu tinha esperanças que sairiam outras…

Na última vez que nos encontramos – como eu poderia saber? -, aqui em casa, ele e Maduzinho, benzedor tuyuka, me deram um nome tuyuka: Diá. Nome próprio de Wiicon – papel social de uma matriarca, geralmente esposa ou filha do Baya (mestre de cerimônias). Aquela que sabe receber, oferecer comida, cantar, sabe a origem das casas e da roça. Higino me disse que dali em diante, quando me ligasse, me chamaria por Diá e não mais Lorena… não tivemos a oportunidade! Mas meu espírito é honrosamente tuyuka (embora eu nunca tenha feito pesquisa de campo no Tiquié).  Avoa mestre Higino. Que seu heriporã retorne para a casa dos sábios de onde você veio. Encontraremos outros meios de comunicação.

 

Por fim, vejam no site do ISA, muitas outras homenagens de amigos e pesquisadores rio-negrenses sobre Higino: bit.ly/2AZ2IlX

 

FONTES

Fotografia em Destaque: Vincent Carelli
Fotografias da Galeria: Juliana Lins; Raoni Valle (UFOPA); Vincent Carelli; Raoni Valle (UFOPA); Raoni Valle (UFOPA)

Colaboração: Raoni Valle