Fabricio Uprewa, 42

Xavante

Relato de homenagem feito por Cristovão Xavante, transcrito por Érica Dumont (Enfermagem e FIEI – FaE, UFMG ).


Sr. Fabrício Uprewa, Xavante, 42 anos, era técnico de enfermagem da aldeia Sangradouro e morador da aldeia São Marcos, onde se casou, ambas terras indígenas Xavante, na Amazônia legal. Sr. Fabrício, trabalhou até o dia que Deus lhe chamou quando então finalizou sua missão na terra. Ele, como todo mundo sabe, é conhecido como um técnico incansável e preocupado com os pacientes. Não media esforços…manha, tarde, noite eram tempos de seu trabalho e assim foi durante a pandemia que atacou a aldeia. Eu, Cristovão Xavante, fui uma das testemunhas vivas de seu trabalho já que fui acometido pela Covid no final de maio quando fiquei internado…Ele constantemente saia da UBS (Unidade Básica de Saúde) e deixava os medicamentos de casa em casa. Como disse, para ele não importava a hora do dia: manha, tarde ou noite, seu foco era o paciente. Eu, quando estava no extremo de minha saúde, atingida pela Covid, tomava remédios de ervas medicinais dos meus ancestrais e também os remédios farmacêuticos. Fui aconselhado por Fabrício a tomar os dois remédios, o do indígena e do não indígena, já que não se tratava de medir a força de cada remédio mas da sabedoria para que juntos eles fizessem efeito. E eu observava muito o sorriso dele já que Fabrício não escondia o sorriso, a alegria de poder ajudar alguém que precisava. Fabrício me tirou dessa crise,  quando recebi o teste negativo e o esperava para me aplicar o soro que daria mais força pro meu corpo, ele não foi e soube que estava fora do trabalho. Fabrício começou a passar mal estava se cuidando em casa. Não passaram dois dias que ele já não estava bem na aldeia quando foi levado as pressas pra cidade para maior suporte de saúde. Não demorou uma semana de tratamento na cidade e ele já voltou dentro do caixão. No momento que eu escutei essa notícia eu não acreditava porque ainda era muito presente a imagem dele me atendendo, aplicando injeção com remédio e tudo e de repente ver ele no caixão. Eu não acreditava. Por que esse senhor teve que partir? Qual foi a missão dele? Nos tirar dessa crise, dessa doença maligna da Covid, e de repente ele não está mais? Então, é importante o elevarmos a altura que ele merece e agradecer imensamente por seus trabalhos e sua disponibilidade. Esse é o meu agradecimento a essa pessoa maravilhosa, do bem, que se entregou para dar vida aos outros. Tenho certeza que está no lugar que ele merece e aqui transmito a todos que puderem ler esse relato, que todos merecemos viver e alguns se sacrificam para que nós que testemunhamos possamos viver e lutar por ainda mais vida.

 

Doüglas Hěnriquē Irazäbä, neto de Fabrício, falou sobre a perda:


Meu avô… sua partida quebrou meu coração. Você sempre me chamava de sucesso, mas agora você não está mais aqui. E não pode mais me chamar de sucesso. Isso vai me fazer muita falta. Mas, as memórias que guardo de momentos com você são para sempre. Elas que me consolarão neste momento. Saudades eternas. Luto Fabrício Uprewa. Descanse em paz.

 

Marcelo Wa’airo, sobrinho de Fabrício, comentou:


Que Deus os receba com alegria e amor. Pois aqui na terra, sabemos que o senhor fará falta. Nunca vou esquecer dos conselhos que o senhor me dava quando eu era pequeno ainda. Mas, infelizmente, aquele nosso combinado da gente estar juntos no mesmo ambiente de trabalho, ficará pra depois.  Daqui pra frente, seguiremos de cabeça erguida. Sempre com força, igual ao que o senhor disse. Pode apostar meu pai, depois de formar em enfermagem, irei fazer Medicina, com certeza. Estou seguro de que o senhor ficará alegre quando eu fizer essa conquista.  Descanse em paz meu pai (tio).

 

Aihé’édi Õmohi, amigo de Fabrício, falou:


Somos amigos desde jovens, isso já faz uns 20 anos. Trabalhamos juntos no polo base de São Marcos. A gente sempre se divertia e fizemos várias viagens juntos. Nossos sonhos e o nosso futuro era o de sempre sermos amigos e ficarmos juntos até envelhecer, mas não deu certo esse nosso sonho. Nosso caminho foi Deus que escolheu. Será eu? Não. Foi meu amigo que resolveu partir e ele foi, partiu. Antes que ele fosse encaminhando para UPA, disse: “Se cuide amigo. Estou partindo, mas voltarei logo para agente trabalhar junto, quero terminar meu serviço, vou fazer minha escala”. Ele chorou e me abraçou bem forte. Saiu e foi embora em lágrimas. E assim foi que partiu esse grande amigo do meu coração!

Descanse em paz amigo, você é muito corajoso.

 

Gerson Wa’raiwe, comentou:


Muito triste perder um amigo e irmão que desde pequeno cresce contigo e compartilha os movimentos de sua vida. Agora entre tantas saudades, a notícia dessa perda. Certeza que Deus o acolherá em eternidade. Descanse em paz saudoso irmão Fabrício.

 

Thalyta, colega de trabalho de Fabrício, destacou:


Descanse em paz meu amigo, grande companheiro de profissão. Você era meu orgulho!!! Nem sei como vai ser sem você, Fabricio Uprewa. Você sempre foi muito valente e guerreiro. E sempre que lembrarmos de você, vai ser de como fazia diferença!! Descanse em paz, cara… vai fazer muita falta.

FONTES

Foto em Destaque: Reprodução//Facebook: Arquivo Pessoal de Fabrício Uprewa

Fotos na Galeria: Enviada por Sr.Cristovão Xavante; Reprodução//Facebook: Arquivo Pessoal de Fabrício Uprewa; (IDEM); (IDEM); (IDEM); (IDEM); Thalyta; Reprodução//Facebook: Arquivo Pessoal de Fabrício Uprewa; Sergio Henrique Ribeiro; Reprodução//Facebook: Arquivo Pessoal de Aihé’édi Õmohi; Reprodução//Facebook: Arquivo Pessoal de Fabrício Uprewa.

Reprodução//Facebook: Arquivo Pessoal Fabrício

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Reprodução//Facebook: Arquivo Pessoal Thalyta

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Reprodução//Facebook: Arquivo Pessoal Sergio Henrique Ribeiro

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Reprodução//Facebook: Arquivo Pessoal de Aihé’édi Õmohi

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Domingos Mãhörõ, 60

Xavante

Domingos Mãhörõ nasceu no sudeste do Estado do Mato Grosso, na aldeia Dom Bosco, município de Poxoréu, próximo à região do rio Cristalino, bacia do Rio das Mortes. Ele foi uma importante liderança Xavante da TI Sangradouro e se destacou em alguns momentos na luta dos povos indígenas em Mato Grosso. Seu Domingos viajou por vários países, levando inúmeros ensinamentos de seu povo e defendendo os direitos originários nos quatro cantos do mundo.

Segundo as informações contidas em um material produzido em 2000, por seu filho Jesus e em parceria com o Colégio Cotiguara, seu Domingos era visto como “um homem de visão ampla, preocupava-se com a estrutura de toda nação indígena na sociedade brasileira, possuindo o desejo de ver os verdadeiros donos dessa terra Brasil engajados no milênio que se inicia; não como observadores da nova era, e sim como ativos personagens transformadores da história deste país”. Domingos Mãhörõ era cacique na aldeia Dom Bosco, foi casado e pai de oito filhos (seis mulheres e dois homens). Era reconhecido pela sua comunidade como um Xavante “determinado, sonhador, culto, profundo conhecedor das tradições de povo (…) um ferrenho batalhador das causas indígenas.”

Estudou até completar o segundo grau e, então, formou-se professor, profissão que exerceu durante um bom tempo. Foi um verdadeiro autodidata. Para além da sua língua originária e do português, falava também espanhol. De acordo com o seu amigo Antonio Carlos Ferreira Banavita “Domingos era um apreciador da boa música, em especial a música andina. Por diversas vezes, gravei para ele inúmeros cd’s e depois gravei também alguns pen drives com músicas andinas”, inclusive, na galeria desta homenagem tem duas fotos que seu Domingos aparece com um violinista boliviano.

Além de ser cacique na aldeia Dom Bosco, era o presidente da Cooperativa Indígena Grande Sangradouro e Volta Grande (COOINGRANDESAN). Infelizmente, seu Domingos Mãhörõ faleceu no dia 06 de julho de 2020, aos 60 anos, na cidade de Cuiabá, por complicações da infecção pelo novo Coronavírus. Domingos Mãhörõ é mais uma pessoa indígena que se vai com esta pandemia da Covid-19, vítima fatal do vírus e do descaso do governo com a saúde dos povos indígenas no Brasil.

Domingos Mãhörõ já estava internado desde o dia 25 de junho, em um hospital particular do município de Primavera do Leste. Lá o estado de saúde do cacique foi se agravando. Ele aguardou por pelo menos três dias uma transferência para outro hospital com disponibilidade de um leito em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em Cuiabá, capital do estado, a cerca de 240km da cidade de Primavera do Leste. Para conseguir essa transferência para o Hospital Estadual Santa Casa, a família do cacique teve que entrar com um pedido de urgência na Justiça. Após a transferência para a UTI seu Domingos Mãhörõ continuou apresentando complicações da doença, dentre elas sofreu duas paradas cardíacas e, infelizmente, não resistiu.

 

Sua sobrinha Samira Tsibodowapré Xavante falou sobre essa grande perda para o povo Xavante:

 

Hoje perdemos mais um guerreiro para a Covid-19. Nosso Grande Guerreiro, meu tio, Cacique Domingos Mãhörõ, ao saber que eu estava em Sangradouro, foi até meu marido e pediu para me ver. E quando me viu, segurou a minha mão e se emocionou. Disse que estava com muitas saudades do meu pai e que quando fosse para Campinápolis iria visitar o túmulo do irmão. Falou que ao me ver estava vendo o meu pai. E complementou dizendo que tinha também uma filha chamada Raíssa e desejava que eu a conhecesse, referindo-se à xará de minha irmã Raíssa. Disse tantas palavras bonitas e de incentivo! Me incentivou a continuar a luta de meu pai. Ele estava muito emocionado e eu também. Disse ainda que estava lutando pelo nosso povo, pelo o povo de Sangradouro. E que ele não se importava com as críticas, pois essa era a luta dele. Mal eu sabia que, tio, era essa a nossa despedida. Eu não sabia. Que Deus te receba hoje.

 

O pesquisador e antropólogo Adelino Mendez registrou:

 

Domingos partiu, a COVID-19 levou Mãhörõ.

A primeira vez que fui à Funai, em 1990, com Sidney Possuelo, fui conhecer o então “Departamento de Índios Isolados”. Na entrada do prédio fui apresentado para o cacique Domingos Mãhörõ. Ontem, depois de esperar atendimento em uma UTI por 3 dias, Mãhörõ se foi.

O povo Xavante perde uma grande liderança, formada pelos velhos Xavante.  A aldeia Dom Bosco e o povo Xavante passam por uma tragédia.

Vá com Deus meu amigo.

 

O fotógrafo e documentarista Antonio Carlos Ferreira Banavita registrou:

 

Dia muito difícil, perdi um grande amigo, um irmão, o xavante Domingos Mãhörö, amizade de mais de 20 anos. Fui com meus filhos ainda crianças na aldeia que ele viveu por muitos anos, Aldeia D. Bosco, à margem do rio Cristalino, onde ele desemboca no Rio das Mortes.

O povo Xavante perde um grande líder, um diplomata, um ser humano conciliador, educado, inteligente, um grande orador, um defensor e divulgador da sua cultura. Conheceu vários países, mas nunca saiu da sua aldeia. Saía para as viagens na busca de fortalecer o seu povo, sua cultura, voltava para a sua aldeia sempre.

Na foto eu e ele, em 6 de julho de 2007, há exatos 13 anos.

Em outra postagem, Antônio, acrescentou:

Depois de mais de 20 anos de amizade, meu amigo, guerreiro xavante Domingos Mãhörõ, sempre na luta pela autonomia do seu povo, foi vencido pelo Covid19. Gravei nosso último encontro no final do ano passado. Estávamos conversando eu, Domingos e Vinícius, meu filho, que na sua infância muitas vezes acompanhou-me à aldeia do Domingos e nadou no Rio Cristalino. Domingos explicou por que usava para o nosso encontro o tipo de madeira que vai na orelha, pois para cada situação tem uma madeira diferente de acordo com a cultura. Pareceu uma despedida. Foi a última vez que estivemos juntos. Continuamos a nos falar por telefone nas vezes que ele ia à cidade, falamos dia 3, ele já hospitalizado disse que estava um pouco melhor. Mas, hoje, a triste notícia. Perdi um grande amigo, um grande ser humano, inteligente, um diplomata, forte na sua cultura, um grande líder, que deixou um legado na defesa da autonomia do seu povo.

Domingos agora vai para a aldeia dos espíritos, juntar-se a também meus amigos, seu pai, mãe e esposa. Que na crença e nos rituais do povo Xavante encontrem a paz tão desejada pelo meu amigo Domingos.

FONTES

Foto em Destaque: Antônio Carlos Ferreira Banavita
Fotos na Galeria: Todas as fotografias são de Antônio Carlos Ferreira Banavita

Links para os textos de Reprodução//Facebook

Adelino Mendez

https://www.facebook.com/photo?fbid=3057575667692604&set=a.108105445972989

Samira Tsibodowapré Xavante

https://www.facebook.com/photo?fbid=3120686924677749&set=a.285040311575772

Antonio Carlos Ferreira Banavita

https://www.facebook.com/antoniocarlos.ferreirabanavita/posts/3119483464779372

https://www.facebook.com/antoniocarlos.ferreirabanavita/videos/3119705234757195

CD-ROM sobre a Cultura Xavante (2000) – Todo o conteúdo do CD foi repassado pelo cacique Domingos Mãhörõ. As informações foram coletadas e organizadas pelo seu filho Jesus: inúmeras fotos, filmes, textos que digitou e gravações de sua própria voz em narrativa xavante.

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Hilário Ab Reta Awe Predzawe, 43

Xavante

Homenagem escrita* por Diane Valdez, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás.


Hilário Ab Reta Awe Predzawe, 43 anos, morador da Aldeia Xavante N. S. de Guadalupe, em Barra do Garças, Mato Grosso, morreu na madrugada de 18 de junho de 2020, vítima do descaso governamental que permitiu a chegada do Coronavírus em sua comunidade. Era aluno do 5º período do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Sua tia morreu há pouco mais de uma semana vítima do mesmo descaso, a mãe e seus dois irmãos, seguem contaminado pelo vírus, assim como outros Xavantes e outras pessoas de etnias indígenas de todo o Brasil.

Hilário entrou na UFG, pelo sistema de cota para indígenas, no ano de 2018. Chegou com o já conhecido atraso histórico de acesso dos povos originários no ensino superior, ainda que a UFG seja uma das universidades públicas que tem buscado cumprir com o direito de povos indígenas ao ensino universal, o acesso e a permanência ainda sofrem de fragilidade.

A trajetória de Hilário, na UFG, não se limitou às dificuldades ocasionadas pela pobreza, como muitos de nossas/os alunas/os enfrentam. A academia era um outro mundo, distante de sua comunidade, não só em quilômetros, como também em movimentos culturais, sociais e políticos. Talvez essa distância, o fazia um aluno reservado e observador, sem abrir mão da seriedade e interesse pelo conhecimento.

Era umas das lideranças de seu povo, portanto, sabia da responsabilidade que assumia frente a comunidade, ele seria um professor, um educador de seu chão, de sua gente. Hilário trabalhava em uma escola, com o formato de um Tatu Bola, na sua aldeia, trabalhava na área de serviços gerais, em breve voltaria como Professor!

No primeiro ano de curso, Hilário, na desconfiança de seu silêncio indígena, que não significava submissão, tentava se inserir no mundo acadêmico. Veio um tempo, que largou tudo e voltou para a aldeia, não por opção dele, mas por opção deste desgoverno que é incansável na destruição de direitos dos povos originários.

O Ministério da Educação e Cultura, suspendeu todas as bolsas de permanência para a população indígena e quilombola. Um grupo de alunas e professoras se juntaram, arrecadaram dinheiro e o trouxeram de volta para a Faculdade. Foi feita uma mobilização de docentes e discentes sensibilizados e a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da UFG, cumprindo seu importante papel, disponibilizou uma bolsa e outros auxílios emergenciais.

Nessa ocasião, quando perguntado sobre o porquê de não falar nada dos problemas para colegas, e voltar para sua comunidade, Hilário disse que achava que ninguém sentiria falta dele.

No segundo ano, trouxe seu curumim para estudar em Goiânia, começou a trabalhar como intérprete na escola, acompanhando seu filho na dificuldade com a língua. Era visível seu orgulho de exercer a função de intérprete. Lutou e enfrentou as diferenças que separavam as culturas e, como muitos, guerreou como seus ancestrais, para não perder seu lugar de legítima conquista.

No início da Pandemia, que começou junto com o semestre letivo, Hilário resistiu em voltar para sua comunidade, tinha medo das aulas retornarem e ele não estar presente na Faculdade, isso aponta o lugar que a UFG ocupava em sua vida. Quando percebeu que seu povo não estava acreditando na letalidade do vírus, retornou para alertar todos sobre o perigo. A UFG, cumprindo seu papel de instituição pública, providenciou o transporte para seu retorno no Mato Grosso.

Em maio, informou para duas amigas, que sua comunidade precisava de cobertores, pois fazia muito frio, e seu povo estava adoecendo. Elas mobilizaram, imediatamente, uma Vakinha On Line, onde arrecadou-se pouco mais de três mil reais, no entanto, como o total da arrecadação demora para ser liberado, emprestaram dinheiro e compraram os cobertores de forma mais hábil, enviando-os dia seguinte.Os sintomas que atingia a comunidade, febre, falta de ar etc. já indicavam que era Coronavírus, no entanto, isso não foi motivo de interesse governamental, que poderia ter evitado o alastramento do vírus.

Ao apresentar os sintomas da doença, Hilário mostrou-se resistente em ir para o hospital, tinha dificuldade de aceitar o tratamento “dos brancos”. Acreditava nos rituais de seu povo, no tratamento natural que conhecia há tempos. Por outro lado, a histórica resistência dele, fazia todo sentido, pois sabemos como os povos indígenas são tratados neste país tão indígena que não se reconhece como indígena. Foi convencido a ir para o hospital e, na última conversa com as amigas em chamada por vídeo, estava muito escuro, e a família arrumou uma lanterna para as meninas verem o rosto dele, que disse para elas, em lágrimas, que estava somente suado, quando perguntado se estava com medo, disse que sim, que estava com muito medo.

A ida para o hospital foi acompanhado de longe pelas amigas, falavam sempre com a Assistente Social que afirmava que Hilário estava se recuperando, que receberia alta a qualquer momento. Nessa madrugada, ao pedirem informações sobre o amigo no hospital, alguém disse que alguém havia morrido, mas não sabia o nome. O nome de mais um número morto é Hilário Ab Reta Awe Predzaw, que deixou a mulher, filhos e todo seu povo Xavante.

O acesso dos povos indígenas ao ensino superior é recente, no entanto, é marcado por extrema coragem e resistência, pois o mundo acadêmico não é de todo um espaço acolhedor. Ainda que a dureza prevaleça na universidade, Hilário encontrou solidariedade e amizade na Faculdade de Educação, ainda que não seja uma solidariedade coletiva, foi construído uma rede de apoio, tanto de alunas/os, como também de docentes, isso pode ter aliviado sua dura estrada longe de seu chão.

Hilário não morreu porque “chegou a hora dele”, morreu por não ter o direito de ser mais um indígena, digno de necessários cuidados. Hilário, era um homem parte do “povo indígena”, um povo invisibilizado, injustiçado, espezinhado, humilhado e, odiado por este desgoverno.

Um povo com suas terras ameaçadas e roubadas pelo latifúndio, mortos por pistoleiros do agronegócio, ironizado e menosprezado por representantes deste desgoverno, ignorado por gente nativa que se acha descendente de europeus, machucados por todos que acham que universidade não é lugar de indígenas.

Não sei falar de fé, nem de ‘destino’, nem de coragem para aliviar o cansaço de um tempo incansavelmente dolorido. Ironicamente, para não dizer, funestamente, o tal ministro da educação, que afirmou odiar a expressão “povos indígenas”, ampliando seu descaso com a educação, revogou hoje [HOJE], (19/06) a portaria assinada pelo ex-ministro de educação, Aluísio Mercadante, que estabelecia a política de cotas para negros, indígenas e pessoas com deficiência em cursos de pós-graduação. Hilário, estaria fora da pós-graduação, se dependesse deste ser desumano.

Quando lanternas começaram a iluminar caminhos de direitos para esta população, no interior de nossas universidades públicas, ainda que timidamente, um furacão de perversidade em formato de governo, dá pontapés e pisa, moendo, as possibilidades de justiça. Feito bandeirantes, grupos genocidas a frente das decisões da nação, estimulam a morte em todos os formatos. Deixar que o coronavírus atue, sem controle, é a proposta de morte atual para os povos originários.

Como Hilário, temos medo, muito medo, mas agarremos as lanternas, e assumimos nosso lugar na defesa dos povos indígenas, não os condenando a escuridão, como muitos fazem.

Hilário Ab Reta Awe Predzaw presente!

 

*Com informações das alunas, companheiras de Hilário, da turma do quinto período de Pedagogia da Faculdade de Educação/UFG, Dorany Mendes Rosa e Raysa Carvalho.

FONTES

Foto em Destaque: foto enviada por Dorany Mendes Rosa.

Fotos da Galeria: fotos da turma da pedagogia UFG, enviadas por Dorany Mendes Rosa.

Colaboração: Érica Dumont / Enfermagem e FIEI – FaE, UFMG – Belo Horizonte/MG.