Poani Higino Tenório, 65

Tuyuka

Raoni Valle: Professor do Programa de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), Santarém – PA.


O Prof. Poani Higino Pimentel Tenório é um ser dinâmico e polivalente, agregador de diversidades, por isso mesmo, interessou-se também pela Arqueologia, em particular pelos petróglifos. Para os povos Indígenas do Alto Rio Negro, os petróglifos são importantes marcadores e agentes da história, memória e de conhecimentos que interconectam mundos, seres e tempos. Mas o Mestre Higino, fustigado pela curiosidade dos cientistas e dos Kumuã, buscou conhecer a forma peculiar como os (as) arqueólogos (as) não-indígenas se interessavam e estudavam os desenhos e inscrições nas pedras, fotografando, classificando e publicando suas ideias. Isto é, registrando e dando nomes que identificavam formas e lugares, tais como antropomorfo (forma de gente) e zoomorfo (forma de bicho), e criando narrativas sobre povos, culturas, territórios e épocas a partir dessas classificações. Intrigavam-lhe certas aproximações arqueológicas que tratavam as gravuras rupestres (outro nome para os desenhos) como coisa do passado antigo; como coisa feita por gente que já morreu; ou como uma coisa ou uma língua morta. Essas três noções em torno de uma ideia de passado morto, que não se efetiva no presente, foram veementemente rejeitadas pelo Mestre logo no início de nossas rusgas interepistêmicas, mais de 10 anos atrás, pelo menos.

Outro desconforto seu relacionava-se propriamente à classificação das formas, que o Mestre considerava simplória demais e insistia que não víamos por completo, que só víamos os pedaços, que chamar waimahsã de zoomorfo e kahpimahsã de antropomorfo revelava uma profunda desinteligência, um despedaçamento do conhecimento. Insistia que nossas classificações não conseguiam ver, ler, falar sobre a essência completa desses seres, pois só víamos figuras, desenhos, feitos por outras pessoas que morreram há centenas ou milhares de anos antes do presente. Higino Pimentel considerava tudo isso uma grave limitação, uma miopia na visão, no pensamento, que ficavam evidentes pelas perguntas infantis formuladas e respostas parciais que não alcançavam a complexidade da percepção dos Kumuã. Basicamente, Higino Tenório, como Kiti Masigʉ e Kumu, via e sentia as formas vivas, na sua integridade e fluidez orgânica de seres vivos em seus ecossistemas interconectados. Os petróglifos, portanto, constituem-se como ecossistemas vivos, integrados aos lugares, seres e mentes humanas e não-humanas. Formam uma rede neural ecologicamente estendida, tal é a filosofia da mente Kumuã. Foi isso que o mestre ensinou para a arqueologia Amazônica e Brasileira, sobre a vida cognitiva, social e espiritual da arte rupestre e dos lugares sagrados, ʉtã hori wametise.

Essa aprendizagem foi tão importante que o Mestre foi convidado a compartilhar seu conhecimento com a Associação Brasileira de Arte Rupestre (ABAR) em 2018, que estupefata pela “tapa na cara com luva de pelica” muito honesta, ética e decolonizante, rendeu todas as homenagens e reconhecimentos ao Mestre Higino pelo seu notório e impressionante saber em relação ao tema, e o convidou para integrar a Associação na qualidade de importante pesquisador Indígena de arte rupestre no Brasil e membro honorário da Abar, junto com ele também foi reconhecido o prof. Jairo Saw Munduruku, não menos importante, tratando-se, pois de uma guinada epistemológica radical e ampla de reconhecimento da importância científica das pesquisas e pesquisadores Indígenas. Com isso, o Higino também se tornou o principal responsável pelo início do processo de decolonização epistemológica deste campo dos estudos da história Indígena no Brasil.

O impacto meteórico que o Mestre Higino representou para os estudos arqueológicos da arte rupestre aqui é irreversível e divisor de águas, tendo sido também internacionalmente reconhecido em grandes eventos científicos da IFRAO (Federação Internacional das Organizações de Arte Rupestre) que agregam a comunidade global de cientistas do tema. Nesta divisão de águas, rochas e seres, ele provocou um encontro das gravuras arqueológicas com a cultura de respeito, Heõpeo Masise, e por sua influência direta e legado, nossa academia, ainda muito branca e ocidental, foi convidada a se repensar e pensar junto com os povos Indígenas sobre a abertura de horizontes anti-coloniais na produção de conhecimentos, que marcam decisivamente este momento da história das transformações desta disciplina em nosso país e na América Latina.

Este é apenas um fragmento do legado deste homem extraordinário, que me adotou epistemologicamente por um período de tempo, em certa medida, e com orgulho reconheço que fui um de seus discípulos, embora não-indígena e dos menos responsivos. Dito isto, sempre honrarei a sua memória. Mestre, descanse em paz junto aos ancestrais Ʉtapinopona, você vai continuar iluminando e inspirando gerações de pesquisadores Indígenas e não-Indígenas.

 

Nota de Pesar da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN)


Higino Pimentel Tenório, liderança tuyuka do Alto Rio Negro, faleceu ontem em Manaus (18/06), às 23.30h. Esse homem, marido de D. Amélia tukano e pai de oito filhos, era um profundo conhecedor de sua cultura e articulador estratégico para garantir a perpetuação do pensamento indígena. Mestre das relações com o mundo exterior, trouxe os mais diversos pesquisadores – antropólogos, matemáticos, linguistas, educadores, arqueólogos, biólogos – para construir um modelo inovador de educação indígena no Alto rio Tiquié e depois se tornou consultor especialista do assunto. Higino também contribuiu muito com o movimento indígena – notadamente com a FOIRN e outras organizações da Amazônia – para defender a resistência ao modelo hegemônico de desenvolvimento predatório da Amazônia. Fez viagens nacionais e internacionais como porta-voz dos povos do Rio Negro no debate sobre educação diferenciada, mudanças climáticas, dentre outros temas.

Higino demonstrava uma mente brilhante que sabia caminhar por diferentes mundos. Embora tenha estudado somente o magistério, Higino foi professor de muitos doutores! Esteve diretamente envolvido com a elaboração de algumas teses da antropologia e convidado como interlocutor de eventos acadêmicos dessa área. Higino também contribuiu muito com a arqueologia, como coautor de artigos, coorientador de pesquisas interculturais da UFAM e consultor de projetos de grande porte coordenados por renomados pesquisadores da arqueologia de diferentes instituições. Recentemente, foi reconhecido em âmbito nacional como membro honorário da Sociedade Brasileira de Arte Rupestre e internacionalmente como o primeiro pesquisador indígena de arte rupestre no Brasil, pela IFRAO.

Higino era, em suma, um diplomata do Rio Negro que soube refletir os desafios do mundo contemporâneo a partir da perspectiva indígena. Era um entusiasta de ideias inovadoras que valorizassem a profundidade dos conhecimentos cosmológicos. Ele deixou um legado enorme para uma ampla rede de pessoas interessadas na Amazônia e será sempre uma fonte de inspiração para jovens e pesquisadores do Rio Negro.

Sua contribuição é fundamental para uma ampla rede de pessoas interessadas na Amazônia e deixou um legado enorme para jovens e pesquisadores que o tinham como fonte de inspiração.

HIGINO TUYUKA! PRESENTE SEMPRE!

(Colaborou: Lorena França)

 

Daiara Figueroa


Hoje nossa família perde mais um gigante,  nosso querido professor Poani Higino Tenorio, do povo Tuyuka – Uhta Pirõ Porã, grande mestre de cerimônia bayá,  grande rezador kumu,  doutor de saber,  historiador,  defensor de nossa cultura…. Tio Higino foi um dos pilares que não deixou nossa cultura morrer, seu legado é enorme: conhecer nossas línguas, nossa história, nossos cantos, nossas músicas,  nossos lugares sagrados, praticar nossas cerimônias, conhecer nossas medicinas…  Companheiro de luta de meu pai, Higino foi uma liderança histórica do Rio Negro, fundador da FOIRN, professor incansável na defesa das línguas e da educação indígena.  Fizemos o possível para cuidar dele, conseguimos transferir de São Gabriel para Manaus, pedimos que pudesse ter também o atendimento da medicina tradicional…  Obrigada tio por sua fé, por ter sido um amigo, professor, por todo seu trabalho… Perdão por não ter conseguido ir ao teu encontro da última vez… Agora você sobe para se encontrar com Tio Feliciano e os outros, com certeza será muito bem recebido na maloca de pedras brancas do céu. Expresso em nome de meu pai e de minha família as mais sinceras condolências a nossos familiares Tuyuka e aos amigos. Añû.

Que nossos corações possam respirar no meio a esta tempestade… Que esse pesadelo acabe, que essa doença vá embora e deixe minha família em paz.

 

Paulo Desana


Em fevereiro deste ano comecei a articular junto com o Higino Tenorio Tenorio a gravação de um novo documentário, onde eu iria assumir a direção em parceria com Mauricio Fonseca. Estávamos animados e com algumas coisas já pré-combinadas. O roteiro praticamente fechado, teria outro grande conhecedor deste mundo cosmológico da cultura Indígena, o Seu Feliciano Lana Desana. Iríamos subir o Rio até Ipanoré, Higino contando sobre a Mitologia da Cobra Canoa e o Feliciano ilustrando a grande viagem dessa Canoa da Transformação. Higino estava super animado, mandava sempre uma mensagem: “E aí Desana alguma notícia da filmagem?” E eu: “Ainda não Desana, aguardando a liberação da verba, mas vai ter”. Bem, a Covid-19 chegou destruindo tudo. Com a notícia de hoje, para mim, não está sendo fácil aceitar isso. São grandes amigos, sempre amei ouvi-los contando sobre o nosso universo Indígena, que é forte e poderoso! A visão que eles passam sobre a gente também ser natureza, deixaram muita sabedoria para todos nós indígenas. Não irei mais ver meus amigos: Higino e chamá-lo de Desana, ver ele fazer suas piadas ou brincar com determinadas situações; e seu Feliciano sempre alegre contando cheio de entusiasmo as suas histórias através de seus desenhos – me deixam em profunda tristeza. Os mestres estão em suas malocas sendo recebidos com muito Dabukuri, carpi, muito Caxiri, vai ser uma cerimônia de 5 dias de muita alegria, as mulheres soltando suas altas e maravilhosas gargalhadas. Meus amigos, um dia estarei chegando por essas bandas, enquanto isso mandem seus sopros de cigarros para nos proteger nesse mundo cheio de maldade, ganância, ira, soberba, destruição. Tenho certeza que venceremos essa guerra. Meus pêsames à família do Higino.

 

Lucia Alberta Andrade


E hoje a Covid-19 levou de nós o querido Higino Tenorio Tenorio Tuyuka. Nosso grande filósofo autodidata. Um dos homens mais inteligentes que já conheci. Ele fazia uma leitura do mundo como ninguém, relacionando os conhecimentos ancestrais com os demais conhecimentos. Nestas fotos, com várias outras pessoas queridas, estávamos sonhando alto, construindo uma proposta de um instituto de conhecimentos indígenas do Rio Negro que ainda não concretizamos. E o Higino foi um dos maiores colaboradores da proposta, nos fez ousar muito, pensar grande e quem sabe um dia chegaremos lá, e esse instituto colocará em prática o que construímos juntos, tá Higino. No final da década de 1990 ele foi meu aluno do 1º Magistério Indígena, mas na verdade, o Higino era professor de todos nós. Aprendi muito com ele! Esse sim entendia bem o que é interculturalidade.  A nossa educação escolar indígena perde um dos seus grandes idealizadores no Rio Negro, um dos fundadores da Escola Utapinopona Tuyuka, que teve grandes avanços, mas para a tristeza do próprio Higino nos últimos anos foi perdendo apoio e se enfraquecendo diante da meta para a qual foi criada.  Mas não iremos esmorecer querido Higino, continuaremos na luta pelos direitos dos povos indígenas, por você, pelos mais de 200 parentes que também foram levados por esse terrível vírus e por todos que ainda continuam entre nós. Siga seu caminho! Com certeza já deu sua contribuição por aqui e se junte aos nossos ancestrais.  Saudades eternas.

 

Elaíze Farias


Um grande conhecedor do Alto Rio Negro partiu levado pela covid-19. Higino Tuyuka, um guerreiro da educação indígena, intelectual, um gênio e pioneiro. Ajudou a decolonizar a ciência. Inspirou e ensinou muitas gerações indígenas de sua região. Muitos doutores brancos beberam de seu conhecimento. Inacreditável o impacto dessa doença nos povos indígenas. Ando sem muitas palavras já. Vai ficar na minha memória o encontro que tivemos em dezembro, quando ficamos num longo papo numa tarde de bubuia; eu numa rede, ele na outra, contando histórias e amenidades.

Higino Pimentel Tenório, liderança tuyuka do Alto Rio Negro, faleceu na cidade de Manaus, na noite do dia 18 de junho de 2020. Nossos colaboradores falam sobre esse profundo sobre esse sábio indígena.

 

Adeilson Lopes

Nosso querido Higino Tuyuka partiu essa madrugada em decorrência de complicações causadas pela Covid-19. É uma tristeza imensa para todos que puderem ter o privilégio de conviver e compartilhar ideias e sonhos com ele. Higino era gigante, dessas pessoas raras no mundo, filósofo, intérprete e tradutor de mundos. Lutou incansavelmente pela valorização da cultura e dos conhecimentos dos povos indígenas do rio Negro. E mesmo diante das maiores dificuldades nunca desistiu de acreditar em um mundo mais justo, mais diverso e de mais respeito e troca entre culturas e mundos. Que ele siga em paz e descanse depois de tanta luta.

 

Ana Maria Machado


Os povos da Amazônia perdem seus grandes conhecedores para esse inimigo invisível que veio de tão longe. Levou Feliciano Lana, exímio artista Desana. Levou Fausto Mandulão, Macuxi incansável na luta pela educação indígena de qualidade.  Hoje é dia de dor maior. Se foi nosso amigo Higino Tenorio Tuyuka. Filósofo curioso pelo mundo, genial em suas explicações, exímio conhecedor das histórias Tuyuka, grande pensador sobre a educação indígena, que sabia valorizar os conhecimentos próprios, fazendo profundas conexões com a ciência e o mundo não indígena. A Covid calou toda esse genialidade e simpatia do Higino… o dia é de luto, em pensamento só me vem sua voz inconfundível. Vou dormir escutando em mente essa voz e revisitando as lembranças belas que tenho dele, para quem sabe assim poder encontrá-lo em sonho!

 

Lorena França


Hoje (21/06/2020) o coração bate miudinho, a garganta está apertada. Foi o enterro de Higino Tenório, grande liderança tuyuka do Alto Rio Negro. Higino era uma das pessoas mais brilhantes e sensíveis que conheci. Sabia tergiversar sobre tantos e tantos assuntos! Tinha um conhecimento profundo sobre sua cosmologia e uma memória impressionante sobre os assuntos do passado: garimpo e Calha Norte dos anos 70, criação do movimento indígena e da FOIRN. Era um crítico da atuação dos salesianos e da repressão que eles causaram à cultura indígena; conhecia muito sobre as plantas e os seus possíveis modos de consumo, sobre as cerimônias e rituais tradicionais, tocador das flautas sagradas. Tinha uma mente inquieta, aguçada. Amava ler! Estava tristíssimo por ter perdido boa parte da visão ano passado. Tornou-se um defensor e especialista do ensino indígena verdadeiramente diferenciado e sua atuação foi fundamental para a revitalização da língua tuyuka.

Higino saiu do Alto rio Tiquié, na floresta profunda fronteiriça com a Colômbia, para dialogar com o mundo. E fez amigos em toda a parte, de todas as áreas de conhecimento. Tinha uma legião de fãs indígenas e não indígenas. Merecidamente

Para mim, um amigo. Um mestre, um homem sensível que conheci chorando copiosamente pela dor da perda de uma filha, que havia morrido meses antes. Foi um amor imediato que felizmente tive a oportunidade de demonstrar muitas vezes. Quando ele ia à cidade, muitas vezes me ligou do telefone da Ju Lins para conversarmos. Apoiou-me no recorte inusitado da minha tese e me ajudou a pensar algumas possibilidades. Fizemos algumas gravações de sua rica perspectiva sobre a comida e a cosmologia. Eu tinha esperanças que sairiam outras…

Na última vez que nos encontramos – como eu poderia saber? -, aqui em casa, ele e Maduzinho, benzedor tuyuka, me deram um nome tuyuka: Diá. Nome próprio de Wiicon – papel social de uma matriarca, geralmente esposa ou filha do Baya (mestre de cerimônias). Aquela que sabe receber, oferecer comida, cantar, sabe a origem das casas e da roça. Higino me disse que dali em diante, quando me ligasse, me chamaria por Diá e não mais Lorena… não tivemos a oportunidade! Mas meu espírito é honrosamente tuyuka (embora eu nunca tenha feito pesquisa de campo no Tiquié).  Avoa mestre Higino. Que seu heriporã retorne para a casa dos sábios de onde você veio. Encontraremos outros meios de comunicação.

 

Por fim, vejam no site do ISA, muitas outras homenagens de amigos e pesquisadores rio-negrenses sobre Higino: bit.ly/2AZ2IlX

 

FONTES

Fotografia em Destaque: Vincent Carelli
Fotografias da Galeria: Juliana Lins; Raoni Valle (UFOPA); Vincent Carelli; Raoni Valle (UFOPA); Raoni Valle (UFOPA)

Colaboração: Raoni Valle

Aniceto Negedeka, 76

Muinane

Aniceto Negedeka (1946-2020) pajé do povo Muinane. Falante de muinane, sua língua paterna, e de outras línguas da família witoto como uitoto-mɨnɨka, o bora e também o espanhol. Seu nome em muiname, “Numéyɨ” ou “Nume”, significava “Coco Pequeno” sendo ele o mais velho da linhagem “Ɨjɨmɨjo” do clã “Néjegaimɨjo” (pessoas de Sombra de Coco de Cumare do clã Gente de Centro).

Seu pai e sua mãe foram sobreviventes do holocausto da borracha, terror exercido pelos seringalistas da “Casa Arana” e Nume viveu em diferentes comunidades, como La Sabana (Rio Cahuinarí), em La Chorrera e Providencia (Rio Igará-Paraná), nas comunidades de Villa Azul e Chukikɨ (Rio Caquetá) e em Leticia. Sua geração foi forçada a assistir aos internatos de missionários católicos, de diferentes denominações cristãs. Desses, lembrava se da solidão e do medo que sentia, contrapostos pelo carinho de uma freira que o cuidou de forma amorosa. Conheceu bem essas diversas tradições e chegou a se desempenhar como catequista.

O conhecimento de mitos, rituais, conselhos e detalhes cosmológicos da “Gente de Centro”, era também reconhecido nessas comunidades. Referentes a eles, Nume herdara de sua família o direito e a responsabilidade de levar a cabo os rituais de dança da guerra, chamados “Ámoka”. Rituais capazes de, dentre outras funções, identificar a maldade e as emoções destrutivas que pudessem afetar seu povo, e transformá-las em alimentos.

Para os antropólogos que trabalhamos com ele, Nume destacava-se pela doçura e bons tratos, e pela obsessão, francamente acadêmica, em escrever em muinane. Investiu anos escrevendo mitos e conselhos, convertendo-se em alguém que fazia uso prático e constante de um alfabeto desenhado pelos missionários do Instituto Linguístico de Verão (SIL), adaptado por ele às suas necessidades, às vezes com a colaboração de linguistas e antropólogos.

Em 2017 recebeu o prêmio nacional do Ministério da Cultura da Colômbia como “reconhecimento à dedicação do enriquecimento da cultura ancestral dos povos indígenas da Colômbia pelo pensamento maior”. O seu “Libro de las Aves” é um documento belo e inestimável, como são também várias publicações bilíngues muinane-espanhol. Faleceu no dia 8 de junho em Letícia, Amazonas, Colômbia, em sua Maloca, construída recentemente por seus filhos (2019), vítima da Covid-19.

 

Texto: Carlos David Londoño

Tradução: Harold Mauricio Nieto

FONTES

Foto em Destaque: Reprodução// SALSA

Fotos da Galeria: Enviadas pelos filhos de Aniceto – Daianara Martinez, Gory Hernando e Luzma Negedeka; Las Aves Cuentan Consejos y Ensenanza.

Society for Anthropology of Lowland South America (SALSA)
https://www.salsa-tipiti.org/covid-19/inmemoriam/fallecio-aniceto-negedeka-mayor-de-la-etnia-feenem%c9%a8naa-muinane-6-8-20/

Colaboração: Harold Mauricio (Antropologia – Valencia/ Colombia)

Bepkororoti Paiakan, 67

Kayapó

Homenagem da COIAB e dos povos indígenas da Amazônia brasileira para o líder Bepkororoti Payakan Kayapó.

(17, Junho, 2020)


Partiu nesta manhã o grande líder Kayapó Bepkororoti, mais conhecido como Paulinho Payakan. Mais uma vida levada pela Covid-19! Para os povos indígenas, em especial os Kayapó, mais uma enciclopédia de conhecimento tradicional que se vai! Para nós, do movimento indígena, mais um companheiro de luta e liderança de referência que nos deixa!

Payakan saiu ainda jovem de sua aldeia e passou um tempo trabalhando com a Funai e conhecendo cidades e a vida fora da Terra Indígena, como estratégia para “pesquisar o mundo dos kuben (não-indígenas)”, como gostava de dizer. Quando retornou ao seu território, já como uma jovem liderança, teve participação fundamental em vários processos de luta do seu povo, inclusive na demarcação da Terra Indígena Kayapó nos anos 1980.

Payakan participou nas discussões da Assembleia Constituinte que asseguraram a inclusão dos Artigos 231 e 232 na Constituição Federal de 1988, tão importantes para os povos indígenas no Brasil. Inteligente, ótimo orador e grande estrategista, sua voz em defesa dos povos indígenas foi bem longe, no Brasil e no mundo, em várias viagens internacionais, divulgou a luta indígena, buscou parceiros e fez inúmeras denúncias.

Payakan também foi um grande defensor do meio ambiente, tendo papel chave na articulação dos povos indígenas com a temática ambiental e do desenvolvimento sustentável. Foi uma referência internacional para o assunto. Entre as várias homenagens, foi capa da importante revista Parade (Washington Post) com o título “O homem que poderia salvar o mundo”. Payakan nunca deixou de usar sua inteligência e voz para lutar pelos povos indígenas. Sempre foi atuante na sua região, nos assuntos relacionadas aos Kayapó. Em 2016, foi eleito Presidente da FEPIPA, pois estava engajado na luta dos povos do Pará, e com frequência em Brasília em diversos movimentos, tendo presença marcante nos Acampamentos Terra Livre.

Payakan é o símbolo de uma liderança indígena! Muito ligada às suas tradições e orgulhoso da beleza da cultura Kayapó! Mas também ligado na modernidade, fazendo filmagens, tirando suas fotos e conectado com o mundo.

Da sua generosidade de compartilhar conhecimentos e sabedoria, da sua força e inteligência para a luta, mas também de sua alegria contagiante. Payakan nos deixa com muitas lembranças e inspirações! Ficaremos aqui dando continuidade as batalhas em defesa dos nossos direitos e com saudades e ótimas lembranças.

Vá em paz nosso GRANDE e INESQUECÍVEL GUERREIRO Bepkororoti Payakan!

Manaus, 17 de junho de 2020

Coordenação das Organizações indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB)

 

Viva Paulinho Paiakan! Viva Bepkororoti!
Grande líder do povo kayapó morre por COVID-19 no Pará

Por Felipe Milanez*


Ontem o mundo indígena amanheceu de luto. Logo cedo começaram a chegar mensagens de áudio de choros, tristeza, vindas de diversas aldeias kayapó. Entre as 1209 pessoas que faleceram ontem no Brasil, das mais de 45 mil vítimas fatais da COVID19, a juventude indígena do Brasil perdeu um de seus maiores ídolos e referências. Em todos os grupos de trocas de mensagens com jovens indígenas, mensagens de tristeza profunda eram compartilhadas por indígenas que vivem do Xingu ao Acre, do Nordeste ao Mato Grosso do Sul, de São Paulo ao Rio Grande do Sul. Na timeline do facebook, Instagram, twitter, de todas as mídias sociais, fotos e mais fotos com mensagens de tristeza e pesar vinda de jovens indígenas em luto, perdendo uma de suas referências, num momento devastador.

Dario Vitório Kopenawa, filho do grande xamã do povo Yanomami Davi Kopenawa, publicou no twitter: “Paulinho ajudou meu pai. Meu pai ajudou Paulinho. A luta indígena é feita de união.” O cineasta Kamikia Kisedjê, do povo Kisedjê, que vive no Xingu, fez um vídeo homenagem com algumas cenas de Paulinho Paiakan dançando e lutando no Acampamento Terra Livre, em Brasília. A Rádio Yandê publicou mensagens de pesar e luto.

O movimento indígena perdeu uma de suas principais referências e uma de suas vozes com ideias e estratégias mais sofisticadas. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e a Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA) publicaram um texto em homenagem, onde expressam a dor da perda de um companheiro de luta e uma referencia: “mais uma enciclopédia tradicional que se vai!”. Relatam diversas contribuições de Paiakan ao longo de sua vida para as lutas indígenas, incluindo os artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988, a eloquência como orador e estrategista, e que em suas viagens internacionais buscou parceiros e fez denuncias. Descrevem a sua generosidade, o saber tradicional, a paixão pela beleza da cultura kayapó, e o seu interesse pela modernidade — ele sempre andava com uma câmera e adorava tirar fotos.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), publicou homenagens, vídeos e falas de Paiakan, seguindo publicações e mensagens de todas as articulações e organizações indígenas regionais. Um vídeo emocionante da APIB registrado em um ATL, Paiakan dizia: “todos nós precisamos nos unir para termos forças para lutar. Sem nossa união, não vamos ter forças para lutar. A nossa única força é a união que precisamos. Só assim vamos ter condições de vencer qualquer governo. Sem união estamos entregando nossa luta, nossa força, nossa cultura, nossa vida, para os ruralistas, para o governo.”

A FEPIPA, Federação dos Povos Indígenas do Pará, que Paiakan ajudou a fundar e foi seu primeiro presidente, divulgou uma nota relembrando alguns dos grandes feitos guerreiros de Paiakan, como contra a Usina Hidrelétrica de Belo Monte (quando se chamava Karara-ô) e na demarcação da Terra Indígena Kayapó, dizendo que muitos jovens hoje se espelham na sua trajetória de vida e de luta, e que perdem o principal chefe: “seus ensinamentos sobre a importância de lutarmos  para a garantia  dos nossos territórios e a preservação  da nossa cultura, estarão para sempre em nossas memórias”.

Fundador também da Associação Floresta Protegida (AFP), que reúne dezenas de aldeias Kayapó no Pará, que prestou outra bela homenagem, “em nome de todos os funcionários e das comunidades associadas manifestamos nossa dor e os mais profundos sentimentos pela perda de nosso parente e companheiro de tantas lutas.” Contam que ele nasceu na aldeia Kubẽkrãkêj na década de 1950, filho do cacique Tchikirí, com quem fundou a aldeia A’Ukre. “Incansável na luta, dedicou sua vida para a proteção das florestas e para a garantia dos territórios e direitos dos Povos Indígenas.”

Entre os feitos, narrados nas diferentes mensagens a AFP lembra que foi um dos primeiros kayapó a aprender português e “um de seus mais dedicados diplomatas junto a seu tio Ropni, sendo reconhecido como um notório Mẽkabẽndjwỳj, mestre das palavras.” O enterro, a AFP comunicou, será realizado de acordo com os ritos funerais de seu povo, e com cuidado para evitar a infecção, na aldeia Ngômeiti. O’é, uma de suas filhas, participa da AFP, enquanto outra filha Maial Panhpunu trabalhou por anos na Secretaria Especial de Saúde Indígena e é uma brilhante pesquisadora em direitos humanos. Tania, sua terceira filha com a esposa Irekran, formou família e vinha ajudando seus pais em Redenção e na aldeia. Suas filhas seguem a luta que aprenderam com o pai e com a mãe. Numa rede social Maial postou: “ontem eu sonhei com você e você disse: ‘seja forte, não tenha medo’”.

Irekran é uma brilhante artista Kayapó, faz pinturas majestosas, desenha roupas, joias, faz artes em miçangas, e prima-irmã da grande líder tuirá, uma ativa mobilizadora das mulheres Kayapó.

Um grande pesquisador

A dor foi sentida profundamente também entre as principais instituições de pesquisas da Amazônia, na Universidade Federal do Pará, por pesquisadores e pesquisadoras do Museu Paraense Emílio Goeldi, entre redes de antropologia como a Associação Brasileira de Antropologia, e a SALSA, a Sociedade para Antropologia das Terras Baixas da América do Sul. Paiakan foi o inventor, junto de seu amigo Darrel Posey, da etnobiologia: ensinando a pensar a partir da interdisciplinariedade, como é o método Kayapó, a viver e preservar e construir a floresta Amazônica. É graças a Paiakan, portanto, que a Universidade de Oxford, no Reino Unido, uma das principais do mundo e onde Posey ensinou, conseguiu modernizar seus departamentos de pesquisas entre antropologia e biologia e desenvolver departamentos interdisciplinares para pesquisar a ecologia.

Por denunciar os interesses econômicos e as desigualdades das relações de poder nos planos de desenvolvimento da Amazônia, nos anos 1980, Paiakan também pode ser considerado um dos fundadores da ecologia política, e um dos promotores da descolonização do conhecimento — campos de pesquisa nos quais eu atuo.

Foi por mobilizar uma rede internacional de apoio contra a construção de usinas no Xingu que Paiakan foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, durante o governo Sarney. Paiakan inovou o movimento ambientalista, mudou a percepção elitista da ideia da conservação para mostrar como a vida dos povos indígenas era a vida da floresta. Foi companheiro de Chico Mendes e de Ailton Krenak na construção da Aliança dos Povos da Floresta. E revelou como os Kayapó não apenas defendiam a Amazônia e eram grandes conhecedores da biodiversidade, mas eram eles mesmo que plantavam a Amazônia, cotidianamente, pelo seu modo de vida.  É reconhecido como um ícone por grandes organizações ambientalistas.

Até mesmo o capitalismo foi influenciado por Paiakan. A construção da parceria pioneira com a Body Shop foi uma forma inovadora de se tentar produzir a partir da floresta sem esgotar os recursos naturais, com respeito às populações tradicionais. Reformar o capitalismo tem sido um desafio para evitar o colapso ecológico que o planeta vive em razão da atividade humana — para todos aqueles que acreditam em boas práticas de empresas, devem a Paiakan a maior inspiração de que o capitalismo deve e poderia mudar para ser, de alguma forma, sustentável.

Relações com a Funai

Entre servidores da Funai na ativa e aposentados e entre sertanistas, o choque foi igualmente profundo. Paiakan sempre foi considerado um dos principais articuladores e intermediadores entre as políticas públicas para os povos indígenas e os povos indígenas, entre o mundo indígena e o indigenismo. Por décadas foi um dedicado funcionário da Funai, onde ensinou a Funai a compreender os povos indígenas, e ensinou os indígenas a compreender como poderiam se relacionar com o Estado. Conheceu a violência do Estado na ditadura com a construção da Rodovia Transamazônica, acompanhou o trabalho de sertanistas como Afonso Alves da Cruz, que estava no contato com o seu grupo kayapó, os Kubẽkrãkêj (ou Kubenkrankren). Foi com o pai de Paiakan que o grande sertanista Afonsinho aprendeu a falar português, em um processo de contato com os povos kayapó no Pará liderado pelo sertanista Chico Meireles, entre os anos 1950 e 1960, em expedição que foi chefiada pelo sertanista Cícero Cavalcanti.

Afonsinho, como era conhecido, me relatou em um depoimento publicado no livro Memórias Sertanistas (Ed. Sesc, 2015):

“Os Kubenkrankren eram índios muito brabos. Recém tinham sido contatados quando eu cheguei. Eram brabos. Eles mataram muita gente no Xingu, eram índios violentos. A aldeia era grande, tinha mais de seiscentas pessoas. Kayapozão brabos, muito fortes, com rodelas de pau grandes no lábio, altos. Os seringueiros todos tinham medo deles. Quem mais massacrou seringueiros naquela região, de todos aqueles povos, devem ter sido os Kubenkrankren. Eram muito temidos. Eles também eram muito atacados. Teve um pessoal que participou do ataque que trabalhou no SPI (Serviço de Proteção aos Índios) também. Mas eles não falavam nada para os índios. Os índios também tinham arma de fogo. Porque eles matavam o seringueiro e levavam a arma do seringueiro. Então teve um funcionário do SPI que tinha sido baleado pelos Kubenkrankren. Ele tinha participado do massacre, do ataque que os seringueiros fizeram. Depois ele pediu as contas e foi embora. Não sei o ano, mas eles pegaram o caminho dos índios e foram atrás até a aldeia.”

O pai de Paiakan não somente ensinou Afonsinho a falar português, como foi fundamental para moldar seu caráter e engaja-lo na defesa dos povos indígenas. O que durou a vida inteira e, ele relatou, foi a partir da experiência entre os Kubẽkrãkêj.

A Funai deu apoio a Paiakan no período em que teve que viver um exílio dentro de seu território, sem liberdade para sair. E advogados da Funai conseguiram, em 2006, retomar a sua liberdade com a comutação da sua pena, cumprida dentro do território.

Foi nessa época que conheci Paiakan. Eu era editor da revista da Funai, Brasil Indígena, e acompanhei uma grande mobilização com mais de 200 chefes kayapó que aconteceu na aldeia Piaraçu, um movimento organizado por Raoni e Megaron para discutir como enfrentar a construção da usina de Belo Monte. Paiakan estava lá. Carregava sempre um caderno onde anotava tudo, em kayapó. Era uma das principais vozes do encontro, em um debate intenso com grandes intelectuais kayapó.

Já se desenhava um cenário diferente daquele dos anos 1980, e Paiakan havia percebido como a estratégia perversa de desenvolvimento do governo Lula iria provocar divisões entre os povos indígenas para facilitar a instalação de usinas hidrelétricas e promover a mineração. Conseguiram construir uma resistência tenaz, e a usina só foi autorizada pela Funai, em 2011, durante o governo Dilma e pelo então presidente da Funai Márcio Meira, de forma autoritária e sem a consulta prévia que os indígenas teriam direito. Antes de assinar Belo Monte, a Funai realizou uma reforma administrativa demitindo Afonsinho, Paiakan e Megaron de seus quadros, também abrindo processos administrativos contra Megaron por perseguição a suas atividades políticas.

Paulinho Paiakan era uma pessoa brilhante, generosa, e foi um grande visionário de seu tempo. Seu nome de branco, “kuben”, homenageava um pássaro do cerrado, enquanto seu nome verdadeiro, Bepkaroroti, descende de uma nobre linhagem. Bep são nomes de chefes, que ganham em um ritual. E Bepkaroroti foi uma grande entidade que existiu no mundo kayapó, um nome sagrado que trazia também grandes responsabilidades ao chefe. Os Kayapó, como diz a autodenominação Mẽbêngôkre, vieram do céu, de um outro planeta, habitar a Terra depois que um caçador encontrou um buraco de tatu e desceu por ele, sendo seguido por diversos outros. Bepkaroroti é um desses deuses que circulam por diferentes planetas — uma posição no mundo espiritual que Paiakan pode estar habitando agora.

Paiakan era um sábio e estrategista. Se sabia ser generoso, também sabia ser duro e intransigente em seus princípios. Condenava absolutamente a prática ilegal de garimpo e de extração madeireira, a qual alguns chefes kayapó resolveram aderir. Isso lhe custou caro, e havia rompido o diálogo com aldeias como Gorotire e Turedjam — inclusive com seu antigo parceiro de lutas, o chefe Kube-í, que passou a apoiar garimpo e apoiar, inclusive, Bolsonaro nas últimas eleições.

Infecção pela COVID-19 dentro da TI Kayapó

É possível que Paiakan tenha sido vítima justamente do que lutava contra. Já há circulação do novo coronavírus no território kayapó, atingindo a cada dia novas aldeias. Como amigo pessoal, vim conversando com Paiakan desde o início de março, preocupado com o risco de ser infectado, e ele era plenamente consciente do risco e buscou meios de evitar o contagio. Teve apoio de suas filhas, Tania, Oé e Maial, e sua esposa Irekran, para procurar isolamento. No final de março me escreveu dizendo: “estamos bem e isolado aqui em casa. Obrigado por sua preocupação com a saúde da minha família, você é amigo de verdade”. Ele queria ir para a aldeia, mas estava buscando recursos, ou seja, mais de 350 litros de gasolina para o barco, além de transporte até um pequeno porto.

Conseguiu, finalmente, ir para a aldeia. Protegido na floresta que amava, ele foi fazer visita a outras aldeias, como Moikarakô, onde tem parentes, e pode ser que tenha se infectado lá.

Uma das possibilidades da qual o novo coronavírus chegou até o território Kayapó foi através da invasão de garimpeiros, e a negociação com alguns indígenas que participam da prática ilegal. Posteriormente, festas nas igrejas evangélicas das aldeias, que até agora continuam com suas atividades diárias, contribuíram para a disseminação entre a população e a circulação no território. Paiakan lutou contra os garimpos e contra o etnocídio das igrejas — o que revela que a grandeza de sua luta poderia ter protegido os kayapó da pandemia.

Há também a suspeita de infecção por servidores da Sesai, que entram no território indígena sem realizar a quarentena fora da cidade, pois o governo federal não implantou os planos de contingência. O agente de saúde que estava no Moikarakô testou positivo quando saiu da aldeia, e ele pode ter sido o vetor involuntário da disseminação. Não é exagero retórico, como venho escrevendo nas últimas colunas, apontar o genocídio através do novo coronavírus.

O governo federal não tem dado as condições mínimas de trabalho aos agentes de saúde, e o coordenador da Secretaria Especial de Saúde Indígena, passou a última semana mais preocupado em disseminar fakenews contra o PL 1142, que foi aprovado no Senado nessa semana e prevê ações emergenciais de apoio a populações indígenas e quilombolas. Nos vídeos e mensagens que fez circular, parecia mais preocupado em economizar dinheiro para o governo federal tocar a politica de extermínio do que ajudar a salvar vidas indígenas. Depois, a caminho do Vale do Javari, onde indígenas do povo Kanamari acusam a Sesai de infectar diversas aldeias, ele fez um vídeo lamentando a morte de Paiakan.

O racismo anti-indígena da imprensa paulista

Se é hoje homenageado em tantos círculos no Brasil e mundo afora, há um grupo específico no Brasil que não aceita o brilho de Paiakan: a imprensa paulista. Paiakan foi vítima de um dos maiores crimes políticos da história da imprensa brasileira. É conhecida a famosa capa da revista Veja, estampando uma foto dele, com trajes tradicionais, escrita SELVAGEM. A acusação de estupro foi publicada em uma semana chave das negociações da Eco-92 no Rio de Janeiro, e visaram não somente atacar o líder indígena, mas todo o movimento ambientalista mundial. E favorecer, como historicamente a revista Veja favoreceu, a elite agrária do país.

Paiakan e sua esposa Irekran foram absolvidos em primeira instância, em 1994, do crime de lesão corporal, porém Paiakan foi condenado por estupro quatro anos depois pelo Tribunal de Justiça do Pará. Paiakan cumpriu a pena dentro da aldeia e Irekran foi considerada inimputável. Sobre o episódio, Paiakan falou abertamente para meu colega da época da Funai, Michel Blanco, em uma entrevista publicada na edição número 4 na revista Brasil Indígena, em 2006: “Eu entendi que não era acusação de estupro, e sim uma acusação política de um crime que eu realmente não cometi. Com o tempo, eu comecei a entender direitinho como o homem branco monta o esquema para prejudicar os outros.” Segundo Paiakan, o caso “teve repercussão para me desmoralizar e para desmoralizar a população indígena do Brasil. E fazer com que eu ou outro índio não lutasse pelos nossos direitos.” Como editores da revista, costumávamos publicar sempre uma entrevista de abertura da revista, a exemplo do que a Veja faz com as “páginas amarelas”, mas no caso, as vozes eram sempre destacadas lideranças indígenas em um movimento que entendíamos ser antirracista.

Esse caso foi profundamente investigado no livro “A construção de um réu – Payakã e os índios na imprensa brasileira”, de Maria José Alfaro Freire, baseado em uma pesquisa doutoral reuniu 217 matérias sobre Payakan, incluindo reportagens, artigos, editoriais, entrevistas, cartas, charges e notas publicados pelos jornais O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo  e pelas revistas Veja e Istoé, no período de junho a dezembro de 1992. De maneira geral, visavam criar consensos sobre a imagem negativa de Payakã, acionando estereótipos de violência, selvageria e canibalismo, e se caracterizaram por promover uma postura anti-indígena e a espetacularização do crime. Nesse sentido, as vozes do discurso de defesa eram “acionadas de maneira a serem deslegitimadas, através da ironia, porque estão em permanente confronto com as supostas evidências desenvolvidas na parte noticiosa” (página 232).

Segundo a autora, “a partir da versão instaurada na revista Veja, assim como no conjunto de suas linhas argumentativas, retomadas e desenvolvida pelos jornais de grande circulação nacional, observamos o acionamento de estereótipos historicamente operantes sobre as populações indígenas, como selvagem, para dar cor e sensacionalismo à narrativa do crime imputado a Payakã, tratado com parcialidade pela revista (página 223).

Como descreve o historiador José Bessa, no site Taquiprati a respeito das “duas mortes de Paulinho Payakã”, “a estratégia consistiu em elaborar uma narrativa ‘noir’, que das páginas policiais se deslocou às páginas editoriais, onde as discussões geram questionamentos sobre a legitimidade e a legalidade de privilégios que reconhecem a posse de territórios pelos povos originários.”

Como mostram as milhares de mensagens da juventude indígena nas mídias sociais, a imprensa não conseguiu destruir a imagem de Paiakan entre os povos indígenas. Mas conseguiu, de forma eficaz, aumentar o muro do racismo e do colonialismo no país, aumentar o fosso de seu ostracismo e obscurantismo, e isolar uma mente indígena brilhante e que sempre defendeu a possibilidade de um convívio respeitoso entre culturas no Brasil, do acesso de milhares de pessoas não indígena. Difamar Paiakan provocou sofrimento a sua família e ao movimento indígena, mas impediu, de forma também impactante, o Brasil de ser um país mais justo e sábio.

A grosseria e o desrespeito do jornalismo brasileiro contra os povos indígenas, sobretudo a grande imprensa paulista que é historicamente subserviente aos interesses da elite agrária, foi repetida ao longo dos anos pela Veja, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo. Em 1995, o atual diretor de redação da Folha, Sérgio D’Avila, publicou uma nota sobre Paiakan com o título: “o declínio do capitalista selvagem”. Apesar de Paiakan ter aceitado recebe-lo em sua aldeia após uma longa negociação, isso não impediu que o conteúdo da matéria tivesse cunho preconceituoso e difamatório, acusando-o de ter um “império de mogno e ouro”. No obituário publicado no dia da sua morte, a quarta-feira 17 de junho, a Folha de S. Paulo acusou Paiakan de ter caído no “ostracismo” depois da acusação de estupro — além de citar histórias fantasiosas escrita por um novelista espanhol para tentar reportar a dimensão de Paulinho Paiakan, dimensão esta que muitos jornalistas da imprensa paulista e em geral, infelizmente, ainda desconhecem.

A revista Veja, nos anos posteriores, publicou inúmeras reportagens produzidas com racismo contra os povos indígenas — chegou a ser interpelada seguidamente pelo movimento indígena e pelo Ministério Público Federal. Foi assim uma matéria com chamada na capa, em maio de 2010, com o título de “A Farra da Antropologia Oportunista”, onde difamava diversas lideranças indígenas como cacique Babau, dos Tupinambá, e Dada, dos Borari. Nesse caso, eu já conhecia em detalhe como a Veja havia operado contra Paiakan, que já era meu amigo e eu já estava engajado no reconhecimento dessa injustiça histórica, e critiquei em minha conta pessoal do twitter o racismo da matéria da Veja — que reagiu exigindo da National Geographic Brasil, aonde eu trabalhava como editor, a minha demissão.

A luta do futuro se inspira no passado

Muito do sofrimento que o país vive hoje sobre o governo de ideologia fascista de Bolsonaro é de responsabilidade da mesma imprensa que difamou Paulinho Paiakan. Os brancos no Brasil teimam em achar que o que acontece com os índios e os negros não irá atingi-los, como se pudessem passar livremente dos efeitos terríveis que o racismo produz na sociedade. O Brasil ganhou o governo fascista que hoje é responsável por desprezar a gravidade de uma pandemia que já matou quase 50 mil pessoas por não reconhecer a luta de indígenas e negros por um país mais justo. Entre eles, o grande Bepkaroroti. Suas palavras em defesa da ecologia já não são sem tempo de serem ouvidas e politicamente defendidas, pois o futuro será sombrio para toda a humanidade em um Planeta em emergência climática.

O Brasil perdeu um de seus maiores heróis da sua trágica história de um país colonial e racista, cujos heróis populares não estão emoldurados na parede nem em estatuas em praças. A história de Paiakan remete à historia de grandes lideres indígenas históricos como Cunhambebe, Sepé Tiaraju, Ajuricaba, e da “história que a história não conta”, como cantou a Mangueira no célebre samba de 2019, aquele que diz que “desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento”.

É no panteão da memória dos grandes lideres indígenas que lutaram contra a colonização, contra o racismo, em defesa da liberdade e da fraternidade entre povos, em defesa da natureza, daqueles que imaginaram coabitar e conviver em suas diferenças em um belo território, com uma ecologia singular, que está Paiakan. Ele viverá para sempre nas memórias das futuras gerações, se este vier a ser um pais mais justo, indígenas e não-indígenas.

*[Texto originalmente publicado na “Carta Capital”, 18/06/2020; revisto para publicação na CLACSO]

 

Leiam também esse texto de José R. Bessa Freire “As duas mortes de Paulinho Payakã”.

FONTES

Foto em Destaque: Murilo Santos (Enviada pelas filhas de Bep’kororoti Payakan)

Fotos da Galeria: Reprodução// Beto Ricardo – ISA; Beto Ricardo – ISA; Arquivo Instituto Raoni (via Amazônia Real); Adelino Mendez (em Facebook); Mídia Ninja; Ueslei Marcelino (via Reuters) ; Bruno Santos (Via Folhapress); Mídia Ninja.

Mídia Ninja // Arquivo Instituto Raoni (via Amazônia Real)
– https://amazoniareal.com.br/lideranca-indigena-historica-paulinho-paiakan-morre-vitima-de-covid-19/ 

ISA- Sociambiental
– https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/morre-paulo-paiakan-grande-lideranca-kayapo

Folhapress
– https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/morre-lideranca-caiapo-paulinho-paiakan-vitima-da-covid-19.shtml

Adelino Mendez
https://www.facebook.com/adelinodelucena.mendes/posts/3004618586321646

Reuters
https://br.reuters.com/article/idBRKBN23O38U-OBRTP

Carta Capital
https://www.cartacapital.com.br/artigo/viva-paulinho-paiakan-viva-bepkororoti/

TAQUIPRATI – Por José Ribamar Bessa Freire:  “As duas mortes de Paulinho Payakã”

http://www.taquiprati.com.br/cronica/1529-as-duas-mortes-de-paulinho-payaka

Bepkaroti Xikrin, 63

Xikrin

“Vou lembrar aqui, querido Bep, modo como era chamado por sua mãe, dos episódios que me lembram você”.

A antropóloga Lux Vidal escreve* em homenagem a Bepkaroti, que morreu vítima de Covid-19 no dia 31/05 na Terra Indígena Xikrin do Cateté.


Sábado, 31 de maio, faleceu, vítima de Covid 19, Bepkaroti Xikrin, o meu irmão na época de minhas pesquisas nos anos 1970-1980. Vivíamos sob o mesmo teto, a casa de seus pais, o chefe Bemoti e sua esposa, exímia pintora e conhecedora das centenas de nomes disponíveis para serem distribuídos aos tabdjuo, netos(as) e sobrinhos(as) das diferentes casas na aldeia. Enfim, uma família tradicional e de prestígio.

Eu nunca o chamei de kamu, irmão, e ele nunca me chamou de kanikwe, irmã, porque a gente nunca se falava, ele tinha sua rede em um canto da casa, um pouco afastada dos pais e de suas irmãs menores, a Bekwe e a Kokoiakati, e a minha rede ficava em um canto oposto, ainda mais longe da família. Quando eu acordava de manhã, ele já havia saído, e de noite, quando me recolhia para dormir, ele ainda não havia voltado. Sua mãe, quando ele demorava, sempre o chamava para poder fechar a porta de palha de babaçu e dar umas cuspidelas para afastar os mekaron, espíritos.

Bepkaroti Xikrin

Ele havia adotado e amansado uma anta que vivia na aldeia, perto da casa. Ela ia para o mato, mas sempre voltava, o que ela gostava mesmo era de passear na pista de aviação e, quando chovia, correr alegremente de um lado para o outro, uma demonstração de alegria. Ela chamava-se Ngrei, um nome cerimonial, bonito e, segundo o mito, nome em voga entre as antas em suas respectivas moradas. Ele me disse que ela era minha sobrinha, kamu kra, filha do irmão. Ele nunca mais mencionou essa relação de parentesco, a não ser uma vez, pelo telefone, quando me disse que Bemoti, meu pai, estava morrendo em Belém.

Sua mãe, Nhiokpú, sempre pintava e ornamentava seus filhos com grande cuidado, eles ficavam muito belos, tenho fotografias. A anta Ngrei era meio sapeca, às vezes ela passava, enquanto eu dormia, debaixo de minha rede, quase me expulsando dela, um susto e tanto! Uma outra vez ela roeu o cabo do rádio que o ligava ao gerador, que ficava do lado de fora do barracão da missão, impedindo-me de me comunicar com Marabá na ocasião de uma forte hemorragia de Nhiokaê, esposa de Botiê. Tive que pedir a Bep-Djare, amigo de sempre, para pegar uma canoa, descer o Itacaiúnas até o lugar chamado Calderão, lugar de pesquisa da Meridional, subir até Carajás e pedir urgentemente um helicóptero para levar Nhiokaê ao hospital da Vale.

Vou lembrar aqui, querido Bep, modo como era chamado por sua mãe, dos episódios que me lembram você: um quando ainda era criança, quando realizamos uma expedição de perambulação pelo território na mata, o meú, e o outro quando já era mẽbengôdju, mais crescido, quando você participou e mesmo comandou um episódio que custei a entender, a matança, de noite, de todas as galinhas da Maria, esposa do senhor Joaquim, casal muito querido, que ajudava nas tarefas do Barracão da missão.

Quando saímos para o meú com sua família, você e outras crianças já tinham ido atrás dos mẽnôrônu-ngokonbori, responsáveis por limpar o caminho na floresta até o primeiro acampamento, carregando seus maracás nos ombros, para que as famílias, com a carga e as crianças, pudessem passar. Vocês não iam muito longe, em um certo momento vocês voltavam, esperando suas famílias, que ainda arrumavam a casa e colocavam nas grandes cestas o que levariam para o mato. Vocês, já fortinhos, ajudavam a carregar e muitas vezes faziam-se de mensageiros, levando víveres de um lado para outro, ou levando caça para os velhos e doentes que tinham ficado na aldeia, e voltando aos acampamentos com sacos pesados de farinha para alimentar a expedição.

Para as crianças, como dizia o Padre Caron, o meú são férias, é grande liberdade, é quando, reunidos em bandos, os meninos imitam os adultos, constroem uma casinha onde se reúnem de noite, constroem seu conselho, o ngobe. Discutem, planejam suas atividades e saem juntos no mato para caçar aves, pescar e coletar frutos. Aprendem a conhecer seu território e o nome de todos os lugares, as antigas aldeias e sua história. Recolhiam matéria prima e fabricavam suas armas ou aprendiam observando os adultos. Você, Bepkaroti, já era o pequeno chefe que comandava a turma.

As meninas também se sentiam mais livres, acompanhavam suas parentes para a coleta no mato, mas o que elas gostavam mesmo era se reunir para pintar, passavam horas pintando cuias, frutão e também se pintando, pela primeira vez, umas às outras, o que não faziam na aldeia. No mato, se elas erravam, não tinham importância, as regras eram mais flexíveis, todos se sentiam mais livres. De noite, na intimidade do acampamento, todos juntos ao lado de seus fogos, falavam de um canto para o outro e mesmo as mulheres falavam formalmente, livremente, de sua pequena cozinha de palha, que elas mesmas haviam construído. Uma noite sua mãe ficou doente, assim lhe cedi a minha rede, onde ela dormiu com Kokoiakati. Eu fiquei dormindo no chão com a Bekwe e você ao meu lado, na esteira. Bemoti dormiu meio atravessado.

Bepkaroti Xikrin

O segundo episódio me lembro muito bem, até porque, para mim que não sou Xikrin, parecia muito estranho.

Uma bela manhã correu a notícia de que um grupo de jovens mẽbengôdju, sob o comando de Bepkaroti, havia matado todas as galinhas de Maria, ela que era sempre tão atenciosa e solidária com os Xikrin que lhe pediam ajuda e conselhos. Diante do desastre, Maria ficou revoltada e Joaquim, quieto, sentado em um canto da cozinha. Eu achei tudo isso um absurdo e uma grande injustiça, um atrevimento indevido. Subi até a aldeia, falando alto comigo mesma ao longo do caminho, decidida a ter uma conversa com o meu pai, Bemoti. Um silêncio constrangedor cobria a aldeia, algo havia acontecido.

Chegando em casa, desembrulhei em bom tom tudo o que tinha a dizer, levantando a cabeça, porque Bemoti era muito alto. No fim, ponderei que ele deveria ter pyaam, vergonha do que aconteceu. Ele me olhou e foi bem severo, quem deveria estar com pyaam, vergonha, segundo ele, era eu, porque não é assim que se fala com um chefe, chefe, benadjure, não tem pyaam. Colocou-me em meu lugar. Fui deitar na minha rede.

Bep, só muito mais tarde entendi que aquilo era uma “transgressão” necessária para os jovens que devem se afastar da casa materna e de sua família, encenando de maneira dramática essa ruptura, para se aproximar, aos poucos, do conselho dos homens, o ngobe, onde serão introduzidos na hora certa por um mẽnõrõnu tum, um ngôkonbori. Conselho no qual ficarão por muito tempo sentados, apenas escutando as palavras fortes dos mẽkrare, homens maduros e os conselhos dos mẽbengei, anciões, que gostam de contar as histórias dos antigos, os Mẽtumiaren.

Entendi ainda melhor o que havia acontecido quando recolhi as narrativas, mitos, sobre os mẽbengôdju kamri, as aventuras de Bekatenti e Motkruoti e as travessuras de Poti. Estava tudo ali, registrado, como nos contos edificantes que nós, kuben, também sabemos contar, só que são diferentes.

Mais tarde, nos anos seguintes, fiquei muito ocupada com a demarcação das terras de vocês e outras tarefas burocráticas, mas me lembro que você gostava de jogar futebol, que no início vocês jogavam segundo as regras do jogo de peteca, tradicional, isto é, apenas passes dirigidos aos compadres, os krôbdjua, gritando krô, krô!

Depois não me lembro, tudo começou a se complicar. Mas agora nesses dias, relendo antigos cadernos de campo, registrei no caderno amarelo de 1992 como você era contra a invasão das madeireiras, discutindo com os outros Mẽbengokré que eram a favor. Foi uma grande perda da madeira nobre dentro da Terra Indígena e no entorno, totalmente devastado. Não sei se você sabia que os Xikrin do Cateté viviam, no passado, à sombra da maior reserva de mogno do planeta.

No fim do ano passado, em Marabá, ao concluir o nosso reencontro, planejado por você e a Bel, ao lado de sua mulher, Ngrei kati, sempre atenta, você lembrou dos antigos, de seu pai Bemoti e de seu avô, Bepkaroti velho. Todos se emocionaram e se recolheram por alguns instantes, chorando.

*Texto originalmente publicado no site do ISA (no dia 02/06/2020), consultar fontes.

FONTES

Foto em Destaque: Reprodução// ISA – Isabelle Vidal
Fotos da Galeria: Reprodução// ISA – Isabelle Vidal

ISA- Sociambiental
https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/homenagem-a-bepkaroti-xikrin

Otávio dos Santos, 68

Sateré-Mawé

Otávio dos Santos, Sateré-Mawé, faleceu no dia 16 de abril de 2020 vítima da covid-19, aos 68 anos de idade. Ele foi transferido da aldeia para o hospital na cidade de Maués, onde ficou internado por quatro dias. Otávio era a principal liderança da comunidade São Benedito, no rio Urupadi, bem próximo ao rio Marau, no município de Maués – Amazonas.

“Meu pai era uma pessoa muito simples e sábia, aprendemos muito com ele! Nos criou e educou sempre com muita luta e vencendo os desafios”, conta Flávio dos Santos, terceiro dos seis filhos de seu Otávio com dona Maria Batista, de 60 anos de idade. E segue Flávio emocionado: “Ele era uma pessoa extremamente dedicada em tudo o que fazia. Por causa de racismo sempre houve tentativas de nos expulsar de nossas terras e por isso meu pai, junto com os conselhos de meu avô Benedito Batista e com a excelente disposição do meu tio Venâncio dos Santos (ambos também falecidos), lutaram muito para nos afirmarmos aqui na região, e assim meu pai ficou muito sábio. Meu pai entendeu que era importante aprender sobre os nossos direitos e valores enquanto povos indígenas e isso foi o grande legado que deixou para a gente. Ele foi guerreiro e muito forte. Sempre trabalhou com plantação de guaraná. Meu pai sonhava em construir um barco, em instalar energia solar e internet em nossa comunidade e com a construção e manutenção de um espaço, na própria comunidade, para realização de atividades e fortalecimento da nossa cultura. Meu pai nos ensinou a lutar pela educação, pela arte, pelos conhecimentos e pelas histórias de nosso povo. Ele era excelente contando muitas histórias de caçadas e sobre como as coisas foram feitas, ensinando a tecer cestos, vassouras, tipiti, peneiras e outros objetos. Mas também contava histórias sobre a origem das plantas, do tipiti, da peneira, sobre a origem da nossa arte. Após sua morte abrimos mais a nossa visão pois ele deixou seus sonhos para a gente continuar sonhando e fazendo acontecer”.

A população Sateré-Mawé vive, em sua maioria, na Terra Indígena Andirá-Marau, situada entre os municípios de Aveiro, Maués, Barreirinha e Itaituba, na divisa entre os estados do Amazonas e Pará. Uma pequena parte dessa população vive na Terra indígena Coatá-Laranjal, junto aos Munduruku. Como muitos outros povos indígenas, também vivem em partes de seus territórios que ficaram de fora dos limites administrativos demarcados pelo estado brasileiro. Para saber mais sobre os Sateré-Mawé acesse o verbete do PIB Socioambiental no link abaixo.

FONTES

Foto em destaque: Flávio Otávio dos Santos (filho de sr.Otávio)

Fotos da galeria: Flávio Otávio dos Santos (filho de sr.Otávio) e Reprodução//Amazônia Real (Acervo CTI)

Amazônia Real
https://amazoniareal.com.br/grande-lideranca-satere-mawe-tuxaua-otavio-dos-santos-morre-por-covid-19-no-amazonas/ 

Colaboração: Diogo Campos (Antropologia, Iepe – Nhamundá/AM)

Fausto Mandulão, 58

Macuxi

Fausto da Silva Mandulão, do povo Macuxi, morreu no dia 03 de junho de 2020 na cidade de Boa Vista, Roraima. Mandulão era da comunidade indígena do Boqueirão, região do Tabaio, município Alto Alegre, perto da capital do estado. Era servidor público federal lotado em Escola Estadual Indígena na comunidade Tabalascada, região Serra da Lua, Município de Cantá. O Conselho Indígena de Roraima (CIR) lamenta a sua morte: “com trajetória marcante no movimento indígena de Roraima, o professor Fausto sempre demonstrou ser defensor dos direitos indígenas. Dentre outras lutas, participou ativamente da elaboração do protocolo de consulta da região da Serra da Lua”.

O Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena da Universidade Federal de Rondônia, onde Fausto concluiu a graduação em 2010, define o professor como “uma referência política no movimento indígena brasileiro no campo da educação escolar indígena”. Ele contribuiu na formulação de políticas educacionais como membro da Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação; foi conselheiro do Conselho Estadual de Educação de Roraima e atuante no movimento indígena no estado por meio da Organização dos Professores Indígenas de Roraima (OPIRR) e como um dos fundadores do Conselho de Professores Indígenas da Amazônia (COPIAM).

O artista Denilson Baniwa, assim disse sobre o amigo: “Esta semana não consegui me esquivar da notícia que o professor Fausto Macuxi se foi. É difícil saber a extensão da perda de um professor. Ainda mais professor indígena. Meu coração mais uma vez ficou do tamanho de uma noz, muita tristeza me ocupou o corpo. Mais uma vez a Covid-19 e a ineficiência do Estado levaram um mestre indígena.

O professor Fausto foi uma das pessoas que me recebeu em Manaus quando saí do Rio Negro para me juntar ao Movimento Indígena Amazônico (MIA). A primeira organização na qual me colocaram foi o COPIAM, onde Fausto era um dos coordenadores. Com ele aprendi muito. Foi um tutor no MIA para mim. Estivemos em ações tensas e em reuniões densas; mas também em vários momentos alegres. Às vezes até jogando sinuca na perigosa Matinha, em Manaus. Mas a maior parte do tempo era dedicado a uma educação indígena de qualidade. Hoje podemos ver os bons resultados dessa luta.

Sinto tanto não poder estar com ele de novo! Não importa mais. Perdi meu amigo, professor e parente. Queria ter ido para uma rodada de damurida, caxiri, pajuaru e parixara contigo em Roraima. Fica para quando a gente se ver nas Plêiades…

Lembrarei de você amigo, sempre! Como você sempre dizia: “eu acredito que somente pela educação é que se pode ter uma sociedade mais justa, mais igualitária, transformadora”. Eu também acredito, só a educação nos liberta. Vamos continuar lutando. Lembrei que tu dizias que não existe Deus além de Makunaimî. Então que sejas bem recepcionado no mundo de Makunaimî, meu amigo.”

 

Homenagem de Priscilla Torres*: Fausto Mandulão, o educador e grande liderança indígena.


Sob os olhos atentos de Makunaima, nasceu no sexto dia do mês de setembro do ano de 1961, Fausto da Silva Mandulão, para os conhecidos Fausto, para os colegas de profissão professor Fausto, para os amigos e família professor Faustinho.

Grande Fausto Mandulão é roraimense da comunidade do Boqueirão, município de Alto Alegre aos arredores da capital Boa Vista. Desde muito novo soube o que é a luta em buscar uma vida digna pautada na educação. Ainda na infância, foi acolhido em um internato de padres, o que moldou seu gosto pela busca do conhecimento e o fez trilhar sua trajetória em busca de uma educação melhor para seu povo. Indígena da etnia Macuxi, Fausto trilhou uma linda caminhada na educação escolar indígena, causa que defendia com sangue, suor, lágrimas e alegrias durante 40 anos de sua vida.

Fausto era dotado de uma tranquilidade soberana, de fácil sorriso e fala mansa, porém incisiva quando o assunto era defender seu povo. Foi candidato a deputado estadual com pautas voltadas para causa indígena, porém não chegou a ser eleito.

Fausto era um exemplo para sua comunidade, criou seus cinco filhos e onze netos em seus princípios sempre pautados na qualidade da educação para os povos indígenas. Deixa sua esposa, também atuante na educação indígena, Josilenilda Cruz, cinco filhos formados: Joici é médica e Giovana é nutricionista, ambas formadas pela Universidade de Brasília – UnB, Josafá é analista de sistemas formado pelo IFRR, Juliana é cirurgiã dentista pela Cathedral e Giofan é engenheiro agrônomo também formado pela UFRR.

Professor Fausto era graduado em Licenciatura Intercultural com habilitação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Roraima desde 2009, foi um dos primeiros estudantes e militantes em defesa do Instituto Insikiran na Universidade Federal de Roraima.

Nas horas vagas, Fausto alimentava paixões espontâneas pelo futebol, era torcedor assumido do Flamengo e adorava jogar sinuca com os amigos e familiares em casa, na comunidade Tabalascada, região Serra da Lua, município do Cantá, onde estabeleceu residência e viveu até seus últimos dias com a família e recebendo seus queridos amigos com grandes festas regadas a muita fartura, dança de forró (uma atividade que era entusiasta) e muita alegria.

O macuxi que durante sua caminhada adquiriu a incrível habilidade de conhecer os mistérios das ervas naturais para medicina tradicional indígena e grande valorizador da cultura de seu povo. Fazia questão de acolher suas amizades e mostrar sua terra e os lugares por onde passava. Amava as riquezas naturais do seu estado e falava com orgulho das belezas da sua região.

De fala doce e ensinamentos nobres, Fausto foi um soberano na defesa dos indígenas. Um homem franzino de pequena estatura, mas de grande legado, com grandes princípios que sempre se basearam na família e nos direitos de seu povo e de quem ele acolhesse. Inclusive da pessoa que vos escreve, que acolheu como filha e devotou seu carinho e amor de pai até seus últimos dias de vida.

O professor FAUSTO DA SILVA MANDULÃO deixa seu nome histórico para educação indígena do estado de Roraima, e certamente marca as nossas vidas com as suas incansáveis lutas pela defesa da educação. Aprendemos muito com sua trajetória.

Com amor, e sinceros sentimentos aos familiares, amigos e companheiros de luta.


*Priscilla Torres é jornalista pela FENAJ, graduanda em Filosofia pela UFAM e Artes Visuais pela UFRR e foi acolhida como filha adotiva de Fausto Mandulão desde 2015 em Roraima.

FONTES

Foto em Destaque: Wanderley Francsico da Silva Pessoa (ACS/MEC)

Fotos na Galeria: Reprodução// Folha BV; Amazônia Real; Amazônia Notícia e Informação (Greyce Rocha); Reprodução// Nova Cartografia Social da Amazônia (via Glycya Ribeiro)

Amazônia Real
https://amazoniareal.com.br/pioneiro-na-educacao-indigena-em-roraima-fausto-mandulao-do-povo-macuxi-morre-vitima-da-covid-19/

Amazônia Notícia e Informação
https://amazonia.org.br/2020/06/pioneiro-na-educacao-indigena-em-roraima-fausto-mandulao-do-povo-macuxi-morre-vitima-da-covid-19/

Folha BV
https://folhabv.com.br/noticia/CIDADES/Capital/Campanha-que-arrecada-alimentos-homenageia-professor-Mandulao/66269

Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena
http://ufrr.br/insikiran/

Nova Cartografia Social da Amazônia
http://novacartografiasocial.com.br/nota-de-pesar-professor-macuxi-fausto-mandulao/

Asuriní

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