Meriná, 75

Macuxi

Depoimento do artivista Jaider Esbell, filho adotivo da Vó Bernal, povo Makuxi, Terra Indígena Raposa Serra do Sol -RR.

 

Meriná – Bernaldina José Pedro (1945 – 2020)


Adotar era para ela o mesmo que adorar. Ela só falava a linguagem do amor. Foi dessas que só sabem amar a ponto de dar seu lugar no mundo para alguém mais jovem experimentar o que ela tinha de sobra. Amorosa deveria ser seu nome, uma mulher que parece ter sido gerada em um favo de mel de tão doce criatura. Agradeço aos seus pais por darem a mim essa mãe, mesmo depois de bem criado, e ainda assim, poder experimentar uma outra intensidade disso que para muitos sempre fica no subjetivo, o verdadeiro amor de mãe.

Ah, ela gostava de abraçar, afagar, cuidar e especialmente cantar, sua nave para a plena extasia. Tinha aquela fé de mover montanhas e foi entre as montanhas que fez descer para o mundo as águas de suas raízes, entranhas da terra, por quem sempre lutou bravamente o berço para guardar seu corpo por merecimento.

Conseguiu a liberdade de seu povo e pode viver a paz, mesmo momentânea. A luta lhe foi generosa e ao menos por um tempo lhe deu tempo para refletir, desfrutar o silêncio antes impossível, dado ao tempo das correrias.

De tempo bem entendia e atendia os desígnios da fé e do talento nas horas mais improváveis para os simples comuns. Tomava banho, cantava, rezava e por tradição fazia esse ritual de gratidão sempre às três horas da madrugada, ou às duas, ou a uma hora, ou mesmo nem dormia como no tempo das vigílias.

O mundo grande nunca deixou de fascinar Bernaldina.  Foi também desse mundo grande que vieram os maiores sofrimentos, por tanta violência que a ganância promove. Caminhou resistente sempre serena pisando em diamantes. Sabia que os cristais eram preciosos e que Deus deixou aquilo lá para completar sua natureza. Lutou cantando. Conflitos a deixaram viúva muito cedo mas nunca desistiu de sua entrega, criar e amar cada filho com a mesma intensidade e que viessem mais e mais.

Percorreu o mundo e embora poucos mencionassem era uma artista singular. Foi merecedora de muitos dons, ou, não exatamente isso, o fato é que sabia que caminhar por aí iria lhe exigir saber as trajetórias. Assim falava um português de estratégia, sua língua mesmo era o Makuxi e o amor incondicional pela vida, pela fartura, pelo belo, pelo alegre e colorido. Gostava de dançar, tomar caxiri e dar bons conselhos.

Por ironia, foi o amor a sua casa que a fez sair da quarentena para “cuidar das coisas”.

Foi e de um certo modo não tinha certeza de nada e foi assim mesmo para sua casa nas montanhas onde esperava estar mais escondida da terrível peste que se manifestava.

Ela dizia: esses brancos já criaram outra doença e ainda ficam falando toda hora sobre isso. Por medida combativa fazia seus rituais. Resina, pimenta, ordens orais enérgicas para que o bicho do adoecimento não se aproximasse de nosso esconderijo.

Tenha quase certeza que foi por amar demais que minha mãe o contraiu. Deve ter sido dando algum abraço, ou benzendo alguma criança adoentada, ou fazendo suas honrarias de bem receber em sua comunidade aqueles que lá chegavam. Foi amando que Bernal adoeceu. Como poderia suspeitar que ao servir seu amor ao outro poderia encontrar precocemente o endereço da morte.

Então é desse amor absoluto que devemos nos lembrar sempre. Não tinha hora para ser prestativa. Ainda tinha muita força e serenidade. Os 75 anos de idade biológica não combinavam com seu espírito puro de uma criança cheia de vida. Nunca teve medo de partir, mas também achou que dessa forma não foi uma boa passagem e bota sua partida triste na conta de seu maior inimigo, o governo desastroso do Brasil atual que não faz o mínimo esforço para garantir a aplicação dos direitos aos povos indígenas para o que tanto lutou a nossa mestra. A memória de Meriná não pode ser apenas de doçura, mas de bravura, como bem fazia ao fechar o semblante diante das injustiças, quando a flor virava onça e defendia. A Liderança pura da guerreira Meriná deve inspirar a revolução, lutemos por justiça, sempre.

    

FONTES

Foto em Destaque: Jaider Esbell

Fotos da Galeria: Jaider Esbell; Jaider Esbell; Jaider Esbell; Jaider Esbell; Parmênio Citó; Patrick Trash; Marcio Lavor; Reprodução/Facebook/Vó Bernaldina (via G1); Jaider Esbell; Reprodução//Facebook de Jaider Esbell; Marcio Lavor.

G1

https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2020/06/24/morre-vitima-do-coronavirus-vovo-bernaldina-mestra-indigena-da-cultura-macuxi-que-teve-encontro-com-o-papa-luto-universal.ghtml

The New York Time

Bernaldina José Pedro, Repository of Indigenous Culture, Dies at 75

https://www.nytimes.com/2020/08/03/obituaries/bernaldina-jose-pedro-dead-coronavirus.html

Mediação: Renan Reis (Antropologia, Iepe – Boa Vista/ RR)

Amâncio Ikõ Munduruku, 60

Munduruku

Homenagem (biografia) escrita e enviada por Arlisson Ikõ Biatpu Munduruku, filho de Amâncio Ikõ Munduruku.

 

Amâncio Ikõ Munduruku – Nome próprio em Munduruku, IkõMuywatpu, nome que em seu tempo era dado pelo pai IkõBijatpu após o nascimento, esses nomes eram nomes de grandes guerreiros que se destacavam nas guerras de nossos ancestrais. Amâncio nasceu em 03 de julho de 1960, em uma aldeia antiga de campos savanas, chamada de Ũrũbuda, abaixo da Aldeia Kaburuá, cabeceira da nascente Waodadi no Rio Kabitutu, Alto Tapajós.

A história de Amâncio começa saindo de Ũrũbuda, com o pai, mãe e irmão Tiago Ikõ Munduruku – IkõBajatpu, primeiro para serem batizados pelos padres na antiga Missão Velha, neste local foram batizados e receberam nomes de brancos, por meio de batistérios, ficaram ali por pouco tempo, seu pai queria que eles estudassem e pudessem aprender ler e escrever, seu pai sempre via que os brancos dominavam sobre eles, quando trabalhavam no ciclo da borracha e com ouro nos garimpos. Por não ter conhecimento, ele sempre era trapaceado e dizia a seus filhos que isso acontecia porque ele não sabia ler e escrever. Quando morou em Ũrũbuda, conheceu algumas aldeias do campo, onde existia a casa dos guerreiros, chamada de uk’ça, era uma de suas memórias mais importantes, porque era um lugar onde se transmitia conhecimentos importantes sobre a história e estratégias de resistência. As influências da borracha e ouro foram muito ruins para o povo Munduruku, meu pai dizia que isso causava muita inveja, muita discórdia e intrigas, porque também os brancos ensinavam muito o individualismo nos seus negócios e isso fazia com que muitos parentes abandonassem suas aldeias para morar em outros lugares. Mas, ele dizia que a maior vontade de seu pai, era levá-los para estudar. Nessas viagens, seus pais acabaram perdendo seus batistérios e seu pai precisava trabalhar na coleta de seringas, quando o dono do seringal perguntou o nome de meu avô, ele não sabia mais, ele só sabia seu nome de origem Munduruku. Ao pronunciá-lo, o seringueiro disse que aquele nome não era um nome bom, então decidiu dar-lhe um nome, onde passou a se chamar de Clementino de Morais, e minha avó de Maria Juliana Sirma. Essa foi uma das coisas muito tristes na história de sua família, porém foi preciso para que pudessem trabalhar nos seringais. Meu avô IkõBijatpu, decidiu descer o rio em busca de educação para seus filhos, porque ouvia dizer que Jacareacanga só oferecia até a quarta série, quando os adolescentes terminavam seus estudos, tinham que fazer novamente o mesmo ciclo, e ele não aceitava. Com o dinheiro recebido com a seringa e ouro, comprou um batelão – embarcação de médio porte, maior que uma canoa normal – e desceram o rio Tapajós, chegaram até a aldeia onde morava o tio irmão de sua mãe, Vicente Saw Munduruku, cacique da aldeia Sai Cinza, e ali permaneceram por duas semanas e voltaram a viajar.

Nessas viagens eles pararam em vários lugares e permaneceram por pouco tempo, pararam num lugar chamado Mangabal, chegaram fazer um tapiri – casa pequena cercada e coberta de palhas -, fizeram roças e permaneceram por pouco tempo nesta localidade, até chegarem em Pimental, comunidade onde sabiam que moravam parentes da mesma etnia. Por não conhecerem os canais de passagens pelas cachoeiras, seu pai decidiu ir caminhando para São Luís do Tapajós, porque ali morava um parente, Manoel Saw Munduruku, cacique falecido da aldeia Sawre Jaybu, este conhecia os canais de passagens com canoas, e então ele os ajudou a chegarem em São Luís do Tapajós, uma vila às margens do rio. Neste lugar moraram por dois meses e continuaram sua viagem, até chegarem em Itaituba em 1968, onde procuram por um parente chamado Inácio Paygo Munduruku – PaygoBamũybu, este morava próximo do lugar onde hoje é a Aldeia Praia do Índio. Com esposa e filhos, ficaram um período de curto tempo e continuaram procurando um lugar para morar, foram para a outra margem do rio, chegaram conhecer até a boca do Rio Tapacurá, voltaram e moraram próximo a uma comunidade chamada São José, fizeram um tapiri e plantaram roças, chegaram cogitar morar naquele lugar. Neste período seus pais fizeram amigos brancos e entregavam seus filhos para estudarem em Itaituba, chegaram morar com pariwat em busca de educação para seus filhos. Neste período sua mãe ficou enferma e diagnosticada com tuberculose, por isso seu pai, decidiu morar mais próximo da cidade, para tratar a saúde de sua esposa.

Ao sair de São José, eles moraram às margens do Rio Piracanã, um lugar que achavam bom para morar, porém sua mãe, numa noite tentando matar pernilongos – mosquitos –, causou um incêndio acidental e, na tentativa de salvar pelo menos as redes, queimou-se, ferindo os braços gravemente. Como aquele lugar ainda ficava distante da cidade para o tratamento de saúde, procuraram um lugar mais próximo da cidade, neste tempo a cidade possuía duas ruas somente.

Chegaram até o lugar que hoje é a Aldeia Praia do Mangue, aos poucos alguns parentes foram chegando para tratar de doenças na cidade. O pai de Amâncio agregava todos e dava-lhes um tempo para ficar, porque temia o pouco espaço que tinham para morar. Com a chegada da Funai – Fundação Nacional do Índio – o pai de Amâncio fazia cobrança para que seu povo tivesse segurança sobre a terra que morava, pois havia constantes ameaças de invasão e muitos supostos donos da terra. Porém, em articulação com a Prefeitura, obteve a segurança de ali morar, já que a terra não pertencia a ninguém, se não a eles.

A primeira esposa de Amâncio foi contra o gosto de seus pais, pois era do mesmo clã, branco, nem seus pais, nem os da sua esposa concordavam, nisto resultou a separação. Por não haver mulheres do clã vermelho mais perto, ele casou-se com uma branca – Pariwat, levou-a para aldeia e com ela teve três filhos, Arlisson, André e Adria. A morte de seu pai, foi algo que desestruturou a família, ficando somente sua mãe que mais tarde veio a falecer e seus irmãos Tiago, Marcos, Francisco e Idelita. Ao falecer o patriarca alguém deveria conduzir a aldeia, então ficou a cargo do primeiro filho Tiago Ikõ. Amâncio e seu irmão Tiago chegaram a servir o exército, seu irmão Tiago engajou no exército, enquanto Amâncio decidiu cuidar do espaço que seu pai deixou. Como Tiago prestava serviços ao exército, quase não podia administrar os serviços da aldeia, Amâncio continuou fazê-los.

Todas as manhãs, visitava as poucas famílias que residiam naquele espaço, procurava saber como estavam, o que precisavam, quais eram seus incômodos, e aconselhava-os não desistirem e tentava com a ajuda FUNAI encontrar projetos que pudessem fortalecer a aldeia em busca de melhorias. Em 1995 numa reunião com aquelas famílias, os pais falavam de suas preocupações com a educação de seus filhos, naquele tempo as escolas eram conveniadas, pagava-se uma taxa e eles com muito esforço mantinham seus filhos na escola, até começarem cobrar por uniformes, os filhos dos moradores voltavam da escola porque não podiam entrar. Amâncio procurou a FUNAI, e o CIMI – Conselho Indigenista Missionário, para alguma solução para aqueles moradores. A FUNAI e o CIMI, através de uma indigenista chamada Terezinha Vieira, começaram articular uma educação diferenciada para aldeia, foram várias reuniões, vários momentos de ideias e Amâncio sabia que também era preciso resgatar a língua Munduruku na aldeia, assim como a cultura e a escola seria o lugar onde tudo começaria.

Em 1996, a Escola Indígena IkõBijatpu era inaugurada, porém sem apoio da Prefeitura de Itaituba, os primeiros professores eram voluntários da própria aldeia, e a vida escolar dos alunos era obtida através do apoio de uma Freira que possuía uma escola num bairro carente do município, depois de muita insistência, a prefeitura reconheceu a importância daquela escola e começaram assim os projetos de educação escolar indígena.

A partir da escola, começavam-se abrir os horizontes para novas conquistas, e ao participar de uma audiência em Santarém, sobre os grandes projetos para bacia do tapajós, um vereador de Itaituba, disse em sua fala que não havia índios em Itaituba, isso porque, estes deveriam ser consultados, isso despertou em Amâncio que para os brancos, ser índio, era está organizado no formato deles, então iniciava-se um novo projeto jurídico, que seria a fundação de uma Associação que pudesse representar os Munduruku que moravam nesta região, começaram procurar os parentes mais próximos para discutir esse projeto, eram eles, parentes de pimental, Aldeia Sawre (km 43), São Luís do Tapajós e Aldeia Praia do Índio e com ajuda da Funai e CIMI, conseguiram fundar em 1998 a Associação Indígena Pariri, que se traduz num enxame de abelhas. Amâncio foi o primeiro presidente da Associação, ao mesmo tempo, também organizava-se como primeiro presidente distrital de Saúde Indígena, junto ao DSEI RIO TAPAJÓS. Atuou por 8 anos à frente da Associação de 1998 a 2006, atuou como presidente do CONDISI – Conselho Distrital de Saúde Indígena de 2000 a 2005.

Amâncio participou de inúmeros eventos sobre Educação Escolar Indígena, foi por muito tempo delegado nato representando a Educação Escolar Indígena a nível municipal, estadual e Nacional, também participou de Conferências Nacionais de Saúde Indígena e de afirmação da cultura para os povos indígenas. Amâncio não gostava que lhe chamassem de índio, quando perguntavam a ele o porquê, ele dizia que era Munduruku. Sempre participava de todas as Assembleias dos Munduruku do Médio Tapajós e incentivou o Cacique Juarez Saw Munduruku a sair da comunidade de Pimental para voltar ao território ancestral de nosso povo, onde marcam a história dos porcos de KaroSakaibu, Território hoje conhecido como Sawre Muuybu e Daje Kapa Eiipi.

Amâncio lutava na justiça pela mudança de seu nome e de seus irmãos, filhos e sobrinhos, sempre em reuniões com Juízes, Promotores e representantes de governo, colocava em pauta esse assunto, porque não aceitava o nome que carregava e que por muito insistir, conseguiu mover uma ação com apoio da Funai e pôde mudar seu nome para identidade cultural e também de outros parentes que sofriam com a mesma situação.

Esse grande líder ausentou-se das lutas por um período, por ter sofrido um grave acidente na cidade em 2010, onde teve graves fraturas na clavícula, rosto e pernas, anteriormente já sofria de problemas na coluna, e tudo isso fez com que se ausentasse dos movimentos de luta, mas sempre estava nos bastidores, como ele dizia, aconselhando e incentivando as lutas. Também esteve ausente quando sua esposa adoeceu por complicações de diabetes, e este acompanhava-a durante o tratamento até o dia de sua morte. Ele também, foi quem incentivou muitos jovens a conhecerem as lutas de perto, dando-lhes oportunidades para conhecerem outros povos e entidades que atuavam na formação de lideranças jovens para continuação das lutas dos povos indígenas. E preparou muitas lideranças jovens para atuarem e darem continuidade nos projetos da Associação e das comunidades indígenas.

 Atuou como professor itinerante nas turmas do Ibaorebu, projeto de formação integrada em ensino médio e técnico, onde destacava-se as seguintes áreas: Magistério Indígena, Técnico em Enfermagem e Técnico em Agroecologia, que acontecia na Aldeia Sai Cinza, e era Coordenado pela FUNAI, onde também formou-se, Técnico em Agroecologia. Amâncio enxergava o Ibaorebu como a resposta para formação intelecto cultural de seu povo e sonhava poder ver novas formações dentro do território Munduruku, inclusive a nível superior com modelos interculturais.

Em 2016, este líder começava voltar ao movimento indígena, sempre sorridente, alegre, calmo, manso, era assim que todos o conheciam, casou-se novamente em 2018, com a Professora Claudeth Saw Munduruku, onde ambos de luta, começavam sonhar novamente projetos de vida para suas aldeias, ele aos poucos estava retornando as atividades na aldeia, promovendo reuniões, aconselhando e sempre muito preocupado com o caminhar da luta pela demarcação e homologação de terras, projetos de educação diferenciada e assistência à saúde indígena no território, incentivando pesquisas sobre os resultados de mercúrio no sangue dos Munduruku, entre outros fatores que perturbam o território indígena. Na Aldeia Praia do Mangue, lidava constantemente com ameaças de invasão a terra, com invasores que entram escondido na terra para uso de drogas, captura de pássaros em gaiolas e intrusos que querem usar a terra para fazer o mal.

Em 2020, no início do ano, Amâncio foi acometido por uma pneumonia, e realizou tratamento sendo acompanhado pela equipe de saúde na própria aldeia, encerrou o tratamento e estava preocupado com ameaça do novo COVID-19 nas aldeias, chamou seus irmãos para uma reunião, onde delegava funções para que houvesse maior empenho a respeito da área conquistada por seu pai, falou do fortalecimento da unidade e compromisso de todos com aldeia e a preservação de espaços separados para manutenção da floresta existente, Amâncio não entendia o mato como lixo, entendia como vida, como forma de preservação do solo. Sempre estava preocupado com a organização da aldeia e, na medida do possível, estava apoiando os projetos da associação e outras comunidades.

Certa vez, sem entender, perguntei a ele por que não fazíamos uma cerca para proteger nossas criações, ele me disse: “filho, aldeia não tem muros! Por isso os pariwat virem se confrontando, porque eles não certeza do que possuem. Ele continuou dizendo, aqui na aldeia, cada um sabe o que cria, o que planta, todos devem respeitar o espaço dos outros, não precisamos de muros para saber o que temos.

Era sábio ao se manifestar, sempre sabia o que falar, se preparava muito para enfrentar diversas situações, porém em 16 de maio de 2020, começou sentir febre e dores no corpo, sem saber o que acontecia, mandou chamar seu tio João Korap, outro puxador da aldeia, para pôr seus ossos no lugar, mas a febre não o deixava, preocupada sua esposa alertou a equipe de saúde sobre a situação, e eles obedecendo o protocolo da SESAI sobre como agir diante da suspeita de COVID-19, aguardavam 9 dias, até fazer o teste para melhor avaliação. A família estava muito preocupada e sempre estava cobrando da equipe melhor acompanhamento.

No dia 24 de maio, a esposa de Amâncio, ligou para seu filho mais velho, informando que este deveria levar seu pai a emergência, pois os medicamentos que ele tomava, não apresentavam melhoras, a equipe foi acionada, e foi levado em ambulância para UPA de Itaituba, e ficou internado até o dia 29 de maio. Pela manhã foi visitado por seu filho mais velho, que também já buscava apoio com amigos e parceiros da associação para retirada de seu pai, tendo em vista o médico ter falado que este já precisava de UTI. O Município de Itaituba aguardava leito de UTI em Santarém, enquanto isso o quadro de Amâncio se agrava mais ainda, e por meio da COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira e pressão do Ministério Público Federal, o Estado assegurou um leito de UTI na Capital do Estado do Pará (Belém) para o dia 30 de maio. Amâncio as 16 horas da tarde, ligou para seu filho, muito cansado e pediu que ele o levasse para casa, pois queria morrer junto de seus familiares, seu filho entrou em desespero e começou cobrar agilidade para a represente do Polo Base. Neste momento as 17h, Amâncio foi levado ao Hospital Municipal de Itaituba para ser entubado e levado ao leito de UTI na capital, porém a UTI aérea ainda não tina sido solicitada pela prefeitura de Itaituba. O mesmo foi entubado com muita dificuldade e saturando 40, segundo informação de uma médica intensivista que operava os respiradores da UTI do Hospital Municipal, esta desabafava sobre a situação do indígena, e também pelo estado dos equipamentos que não funcionavam, e ainda não havia oxigênio para que fosse entubado a tempo. Com ajuda dos médicos da UTI aérea, que vieram buscá-lo, conseguiram sedá-lo e entubar, porém não houve como ser retirado naquele mesmo dia, ficando assim para o dia 30 de maio, porque aguardava melhorar a saturação. Foi retirado para Belém as 10 horas da manhã, chegando e sendo levado ao Hospital Regional Dr. Abelardo Santos, onde continuou sedado, entubado, e veio falecer as 3 horas da madrugada do dia 02 de junho de 2020.

A morte de Amâncio Ikõ Munduruku, foi um choque para todas as comunidades do médio e alto tapajós, porque ele trazia consigo, muita vida. Até hoje, as comunidades choram a perda desse grande líder.

FONTES

Foto em Destaque: Izabel Gobbi (FUNAI)
Fotos na Galeria: Via página “Os Brasis e suas Memórias”; Izabel Gobbi (FUNAI)

Este relato também foi publicado pelo projeto “Os Brasis e suas Memórias”
 https://osbrasisesuasmemorias.com.br/amancio-iko-munduruku-ikomuywatpu/

Sobre o Amâncio Ikõ Munduruku, há também este tributo feito pelo pessoal do  Neepes/Fiocruz.
https://www.youtube.com/watch?v=bNFGkugCJbQ&feature=youtu.be&fbclid=IwAR0r2rHp8Dn3EwDfwZapHX06tieyNQWRk7WdBwVeQ-jsOOjJXsHoUMQ-Zrc


Homenagem (biografia) escrita e enviada por Arlisson Ikõ Biatpu Munduruku, filho de Amâncio Ikõ Munduruku.

Mediação: Luciana França (Antropologia, UFOPA – Santarém/ PA) e Izabel Gobbi (FUNAI)

Maria de Lurdes, 69

Mura

Homenagem enviada por Márcia Mura


Dona Maria de Lurdes de Oliveira Brandão, 69 anos, faleceu dia 26 de maio de 2020, de Covid-19. Vivia em Nazaré, distrito de Porto Velho, às margens do rio Madeira. Dona Lurdes faz parte da memória ancestral das mulheres amazônicas, desses lagos e rios do nosso território Mura. Trouxe ao mundo a vida de muitas crianças com seu dom de parteira. Quantas vezes eu vi outras pessoas passarem em frente de sua casa pedindo a bênção a ela: “sua bênção, mãe!”. E ela lá, apesar do seu jeito sério, ao final sempre dava sua risada e respondia: “Que Deus abençoe!”.

Além de parteira, também D.Lurdes era guardiã das nossas plantas de cura. No seu quintal, haviam várias plantas medicinais para os nossos remédios. Todos que precisavam de algum tratamento da nossa cultura medicinal iam lá procurar os remédios com ela. D.Lurdes sempre tinha uma planta para fazer o remédio certo. Sempre avistava ela dando suas plantas medicinais as pessoas que precisavam.

Mas, em 2014, com a grande inundação do rio, causada pela construção das hidrelétricas, ela passou a ter que fazer mudas de todas as plantas para salvá-las. Desde então, ano após ano, quando vinha a grande cheia, ela tirava muda por muda, planta por planta, e colocavam todas num lugar alto. Quando a água descia, ela replantava tudo novamente no seu quintal.

D. Lurdes era umas das mulheres mais velhas e como grande matriarca que foi, cultivou vários laços afetivos, fortaleceu nossos vínculos territoriais e com a vida. Ela nos deixou seus conhecimentos. E sua memória vai se manter viva por meio das nossas práticas. Seus remédios foram repassados não somente para sua família, mas para todas as mulheres que tiveram oportunidade de trocar algum conhecimento com ela. Eu, Márcia Mura, fui uma dessas mulheres. Felizmente pude vivenciar algumas experiências de saberes e de sabores da nossa cultura junto a ela e sei que dona Lurdes vai se manter viva em nossas memórias.

“Dona Lurdes era nossa anciã, guardiã dos conhecimentos tradicionais. Era a mãe Lurdes. Eu moro ao lado da casa dela. Independente de sermos ou não da família, nós construímos relações afetivas e de parentesco. Somos todos parentes. A perda dela foi muito forte para todos nós de Nazaré. E como não foi possível fazer o funeral e sepultá-la às margens do lago do Peixe Boi, fizemos uma live de celebração da passagem dela. Pois ela não podia ficar sem um ritual de passagem e as pessoas da comunidade participaram, falando da importância dela para cada um e coletivamente.”

(Palavras de Márcia Mura ao enviar a homenagem de D.Lurdes para Aline Corrêa)

FONTES

Foto em Destaque: Márcia Mura

Fotos da Galeria: Márcia Mura

Texto da homenagem e fotos por Márcia Mura.

Pedro Alcântara, 89

Tupinambá
Homenagem enviada por Juliana Santana (Amanayara Tupinambá)


“Cada guardião do saber quando se encanta é um livro vivo que se fecha. Mas para nós, povo tupinambá, quando balançamos o maracá, entoamos nosso canto, aqueles que se foram, se fazem presente, é uma força encantada”. Com muita tristeza o nosso ancião Seu Pedro deixou esse mundo aos 89 anos, uma vítima desse novo inimigo que está assolando o mundo, o COVID 19.

Nascido e criado no território indígena Tupinambá de Olivença, na comunidade Acuípe do meio II, tinha grande ciência com a terra.Viúvo desde muito cedo, criou seus filhos tirando o sustento do plantio da piaçava e da mandioca. Respeitado e amado por todos, seu Pedro Alcântara, nos deixa seus ensinamentos e saberes em nossas memórias.

Sua neta Daniela Ferreira, relatou:

“Meu avô foi um homem muito integro amado na sua comunidade e nos deixou muitos saberes…só tenho a agradecer Pedro Alcântara Ferreira dos Santos, pelas lembranças, momentos bons que vivemos juntos. Agradecer pelos conselhos, que me lembravam que ‘não podia tomar café e tomar banho’, pelo incentivo para estudar e adquirir outros conhecimentos para fortalecer o nosso povo. Ele deixou um legado para a gente, uma força para continuar, mostrar que ele está vivo dentro dos nossos corações e suas lembranças sempre serão permanecidas a cada minuto da nossa vida. Tenho muito orgulho do meu avô.”

 

Deixamos, povo tupinambá de Olivença, a nossa eterna saudade e gratidão, a esse guerreiro que tanto contribuiu na luta do seu povo.

FONTE

Foto de Destaque: Juliana Santana (Amanayara Tupinambá)
Fotos da Galeria: Juliana Santana (Amanayara Tupinambá)

Texto enviado pela Juliana Santana (Amanayara Tupinambá)

Colaboração: Érica Dumont / Enfermagem e FIEI – FaE, UFMG – Belo Horizonte/MG.

Zé Yté Kayapó, 88

Kayapó

Adeus a Zé Yté Kayapó – Link da homenagem enviada por Márcio Meira


Em muitos cantos dessa grande Amazônia e no seio de diversos povos indígenas e comunidades tradicionais, lideranças e guardiões de conhecimentos ancestrais estão sendo vitimados pela Covid-19. Avós dos povos Tikuna, Kambeba, Tukano, Munduruku, Ka’apor, Murui, Xikrin, Arapium, Yanomami, Guajajara, entre muitos outros, lutaram com garra, como sempre fizeram, pela sua vida.

Infelizmente o nosso querido Zé Yté Kayapó, da aldeia Gorotire, se foi na noite do dia 02 de junho de 2020, aos 88 anos. Também conhecido e citado por alguns pesquisadores como José Uté, foi um dos principais colaboradores dos estudos etnobiológicos conduzidos por Darrell Posey e seus colegas no contexto do “Projeto Kayapó”, juntamente com Beptopup (já falecido), Kapraponh (hoje com 73 anos) e outros indígenas, proporcionou os conhecimentos que auxiliaram os cientistas na compreensão de como os Mebêngôkre-Kayapó manejam os ambientes de floresta e cerrado, de onde obtêm recursos diversos. Zé Yté e todos os indígenas que contribuíram com seus conhecimentos às pesquisas antropológicas e etnobiológicas, na década de 1980, deram visibilidade ao importante papel dos saberes locais para a conservação da biodiversidade, ao mesmo tempo em que suas lutas, fundamentadas na importância do território para a vida do seu povo, contribuíram para criar uma consciência política que guiou as agendas socioambientais em diversos cantos da Amazônia. Uma das grandes preocupações de Zé Yté era com a preservação destes saberes entre os mais jovens. Nos últimos anos, ele e outras lideranças vinham se dedicando em conseguir apoio para novas ações de pesquisa sobre plantas medicinais e alimentícias nos seus territórios, com o intuito de melhorar o acesso aos recursos medicinais da flora local pelos wayanga (pajés) e especialistas em cuidados tradicionais em saúde e pelos moradores das aldeias, desafio imprescindível para a saúde e a soberania alimentar dos Mebêngôkre-Kayapó.

Tivemos o privilégio de contar com a presença de Zé Yté no Museu Goeldi, em agosto de 2018, quando foi convidado a participar no XVI Congresso Internacional de Etnobiologia, também conhecido como “Belém + 30”, evento que evocou os 30 anos da realização do Primeiro Congresso Internacional de Etnobiologia, realizado em Belém em 1988 e organizado pelo antropólogo e etnobiólogo Darrell Posey e a equipe de colaboradores e no qual os Kayapó tiveram papel protagonizante. No “Belém + 30”, Zé Yté, ao lado de grandes lideranças mebêngôkre como Raoni (Rop ni), Tuire, Paulinho Pajakanh e Megaron, nos prestigiaram com a sua presença e a sua palavra, evocando a Posey, conhecido pelo apelido Jajrâti. Nessa ocasião, a exposição “Os Kayapó e Jairâti. Saberes e lutas compartilhadas” foi uma forma de homenagear a existência, os saberes e lutas mebêngôkre e as já centenárias relações entre o povo Kayapó e o Museu Goeldi.

Em nome da equipe do projeto de pesquisa “Saúde e Soberania alimentar Mebêngôkre-Kayapó: conhecimentos, práticas e inovações”, queremos fazer uma homenagem póstuma ao querido Zé Yté e expressamos nossos sentimentos de pesar a toda a sua família e ao povo Mebêngokre-Kayapó por esta irreparável perda.

Boa viagem, Zé Yté. Continue cuidando do seu povo nos confins do pluriverso!

 

Projeto de Pesquisa Saúde e soberania alimentar Mebêngôkre-Kayapó

FONTES
Foto de Destaque: Ádria Reis (via Museu Goeldi)
Fotos da Galeria: Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia (SBEE); Ádria Reis (via Museu Goeldi)

Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia (SBEE)
https://www.etnobiologia.org/single-post/2020/06/10/Adeus-a-Z%C3%A9-Yt%C3%A9-Kayap%C3%B3

Museu Paraense Emílio Goeldi
https://www.museu-goeldi.br/noticias/adeus-a-ze-yte-kayapo/view

Link da homenagem enviada por: Márcio Meira

Dionito José de Souza, 52

Uncategorized

Texto enviado pela fisioterapeuta e antropóloga Chris Barra


Dionito José de Souza, da etnia Macuxi, nasceu em 20 de junho de 1967, na Comunidade Maturuca, Região das Serras na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS). Faleceu vítima da Covid-19, em 15 de junho de 2020, na comunidade de São Mateus , na região das Serras da TIRSS, ele tinha 52 anos e quase chegou a completar os 53 anos.

Conheci Dionito José de Souza em fevereiro de 2015 durante o segundo encontro de parteiras, rezadores e pajés “Revivendo nossa cultura e nossa sabedoria indígena” na comunidade Maturuca, Região das Serras na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Esses encontros, realizados duas vezes ao ano em diferentes comunidades da Região das Serras nos anos de 2014 a 2019, foram organizados por ele, indígena macuxi na época presidente do Conselho Local de Saúde, e por sua esposa, a indígena taurepang Edilasomara Sampaio. Segundo Dionito, esses encontros eram “para falar um pouco da medicina tradicional indígena, mas também da política dos brancos, a política do estado”. Essa era, no momento, sua luta. De um lado, fazer os indígenas, principalmente os mais jovens, entenderem seus direitos e a importância da medicina tradicional. Do outro, reivindicar dos profissionais de saúde e do DSEI Leste de Roraima, ações efetivas na articulação da medicina ocidental e os saberes tradicionais indígenas, clamando por mais qualidade na saúde indígena.

Falava sempre de um sonho maior, “um novo hospital, um hospital indígena, que vai ter pajés, parteiras, rezador, benzedor, sala de vacina, cartório, Ultra Som, RX” e de outros sonhos, alguns já iniciados, como o Centro de Produção Tamanduá para plantio e produção da medicação tradicional. Participei algumas vezes da produção de xaropes, tinturas e pomadas neste centro. Bem cedo pela manhã, as plantas eram colhidas numa horta linda e durante todo o dia, um grupo de participantes de uma ou mais comunidades produziam a medicação tradicional a ser distribuída para os 09 pólos base da região. Nesses momentos e nos momentos dos encontros foram produzidos registros sobre o conhecimento tradicional, os cadernos das Plantas Medicinais, das Rezas e das Parteiras. Muitas dessas ações só foram possíveis pela vontade e determinação incansável de Dionito e sua esposa, Edilasomara, sempre juntos nessa luta. Todo esse movimento construído por eles contribuiu efetivamente para a retomada, nos últimos anos, do setor de Medicina Tradicional do DSEI Leste de Roraima.

Dionito iniciou sua atuação na área da saúde como microscopista. Conta que aprendeu a fazer vários exames para malária e tuberculose com os Médicos sem fronteiras, mas que aprendeu também a força política “na força tarefa porque os brancos não queriam cuidar de nós”. Foi agente indígena de saúde, coordenador regional de saúde, presidente do Conselho Local de Saúde e conselheiro distrital (CONDISI).

Além de sua luta por uma saúde indígena de qualidade, sua atuação política é destacada na defesa pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e na retirada dos não indígenas da região. Foi coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR) entre os anos de 2007 e 2011. Exercia essa função no momento da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009, festejada com a presença do então presidente Lula em Maturuca, comunidade onde nasceu e viveu toda sua vida.

O atual coordenandor do CIR, Enock Taurepang, em uma de suas falas, destacou Dionito como um grande líder, “um exemplo para muitos jovens na luta pelo bem viver de nossas comunidades”. Com a partida de Dionito, reafirmou o compromisso de fazer o bem viver acontecer dentro das comunidades e de ter o respeito das instituições governamentais e não governamentais. “Queremos que o bem viver viva dentro de nossos territórios, nossas comunidades e nossas regiões”.

Dionito, hoje, era vice tuxaua da Região das Serras. Vivia na comunidade Maturuca com sua esposa Edilasomara e muitos dos seus 11 filhos e filhas. Nos últimos meses, participou ativamente das ações de enfretamento da pandemia Covid-19 na Região das Serras. Nem no momento de sua morte, abandonou sua luta. Aos 52 anos de idade (completaria, no dia 20 de junho, 53 anos), Dionito morreu na comunidade São Mateus sendo cuidado pelos pajés da região e com a medicina tradicional.

Nesse momento de pandemia, o modo de morrer de Dionito me fez pensar, para além da morte física, nas tantas outras mortes invisíveis do muito que faz vivo, o bem viver dentro das comunidades. Dionito morreu e foi enterrado na terra em que nasceu e pela qual lutou, morreu nas mãos dos pajés que veementemente respeitou e valorizou, morreu próximo às pessoas que muito amou. Pelo tanto que o conhecia, arrisco dizer que essa foi a sua escolha. Faltou o outro lado pelo qual também intensamente lutou: a política do estado. Como sempre, faltou planejamento, faltou eficácia das ações de saúde não indígena, faltou vontade, envolvimento e diálogo para pensar novos modos, inventar outras possibilidades.

O modo de morrer de Dionito diz de sua vida e de sua luta que não termina aqui. Como tantos outros guerreiros indígenas, foi chamado a subir aos céus e agir de outros modos, se juntar a outros vagalumes. Nas terras de Macunaima, aquele que tudo em pedra transforma, não diria só como vagalumes, mas sim cristais, incrustados nas serras do lavrado e destinados a brilhar eternamente.

FONTES

Foto em Destaque: Chris Barra

Fotos na Galeria: Emily Costa/G1 RR/Arquivo; Aldenir Wapichana (Via ISA-Sociambiental); Marcello Casal Jr./Agência Brasil (Via ISA-Sociambiental); Todas as demais fotos são de autoria de Chris Barra.

Isa-Socioambiental
https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-rio-negro/morre-dionito-jose-de-souza-macuxi-lideranca-indigena-da-raposa-serra-do-sol

G1
https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2020/06/16/morre-lider-indigena-que-atuou-pela-demarcacao-da-raposa-serra-do-sol-em-roraima.ghtml

Facebook
https://www.facebook.com/100000233120690/posts/4230511576966571/?d=n

Texto e fotos enviados por: Chris Barra

Acesso para Plataformas de Monitoramento da Covid-19

Notícias
Emergência Indígena (APIB)


Comunidade para divulgação, articulação e mobilização de suporte aos povos indígenas em tempos de pandemia de coronavírus. Iniciativa realizada de forma colaborativa por organizações indígenas e indigenistas.

Para conhecer mais sobre o projeto, clique aqui.

 

Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI)


Boletim Epidemiológico da SESAI


Plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus (Covid-19) no Brasil.

O acompanhamento da evolução do novo coronavírus entre as populações indígenas representa um grande desafio. Embora os números oficiais informem sobre a dinâmica de notificação, eles não refletem necessariamente a extensão da pandemia. Ademais, a falta de desagregação dos dados dificulta o reconhecimento das regiões e dos povos mais afetados. Outro problema grave é a ausência de dados sobre indígenas que vivem fora de Terras Indígenas homologadas, o que inclui tanto citadinos como populações que aguardam a finalização do longo processo de demarcação de suas terras. 

Para conhecer mais sobre o projeto, clique aqui.

 

Enfrentamento à Covid 19 no Amapá e norte do Pará

A Covid 19 chegou nas terras indígenas do Amapá e norte do Pará. São mais de 150 casos confirmados nas Terras Indígenas Parque do Tumucumaque e Paru d’Este. E mais de 170 nas Terras Indígenas do Oiapoque. Em Macapá, mais de 100 índios testaram positivo. E o na cidade de Oiapoque, mais de 10 indígenas confirmados e inúmeros suspeitos. Ambas as cidades apresentam um alto número de infectados, os hospitais estão colapsados.

Acesse aqui o monitoramento dos casos nas Terras Indígenas do Oiapoque.

Acesse aqui o monitoramento dos casos nas Terras Indígenas Parque do Tumucumaque e Rio Paru d’Este.

Acesse aqui materiais informativos elaborados para o povo indígena Wajãpi

Acesse aqui materiais informativos elaborados em Hixkaryana

 

Monitoramento de casos de Covid-19 nos povos indígenas do Brasil


Este trabalho reúne os esforços de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, da Universidade Federal do Amazonas e da Universidade Estadual do Amazonas. São apresentadas informações sobre o contágio de coronavírus (Covid-19) em Terras Indígenas (TI’s) e Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) do Brasil.

Os dados sobre contágio de coronavírus (Covid-19) foram consultados na página da DSEI. Os mesmos foram compilados, organizados e tabulados pela equipe para serem elaborados os mapas online com sobreposição de informações do Índice de Vulnerabilidade Demográfica e Infraestrutural das Terras Indígenas à COVID-19 (IVDIC) proposto por Azevedo et al. (2020) para as TI’s e DSEI.

Para conhecer mais sobre esse trabalho, clique aqui.

 

InfoAmazonia: Pandemias na Amazônia


Pandemias na Amazônia é um mapeamento colaborativo das narrativas e relatos sobre os modos de pensamentos e as estratégias dos povos indígenas e comunidades tradicionais em torno das crises epidêmicas e ambientais na Amazônia.

O projeto desenvolvido pelo NEAI/UFAM (Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena) com o InfoAmazonia permite às comunidades e/ou seus mediadores inserir em uma plataforma digital conteúdo de texto, áudio e vídeo. São reflexões sobre a situação em que vivem e sobre suas estratégias de manutenção da saúde de seus corpos e da habitabilidade de seus territórios.

O projeto nasce da iniciativa de antropólogos/as, pesquisadores/as indígenas do NEAI que iniciaram a escrita de uma coleção de textos e de relatos em áudio sobre a pandemia da COVID-19.

Para conhecer mais sobre o mapeamento, clique aqui.

 

InfoAmazonia: Monitor Covid-19 na Amazônia


Para ajudar a entender como a Covid-19 tem afetado a população amazônica, este projeto monitora a doença e fatores que influenciam sua evolução nos nove estados da Amazônia Legal. Os dados são atualizados automaticamente, em sincronia com os dados abertos disponibilizados pelo Brasil.IO, que compila diariamente informações das Secretarias Estaduais de Saúde. 

Para conhecer mais sobre o projeto, clique aqui.

 

Rede Transfronteiriça – COVID-19 (ILMD-Fiocruz Amazônia/ NESAM – UEA/ GET-UNAL/ IMANI-UNC)


A REDE TRANSFRONTEIRIÇA COVID-19 nasce como uma iniciativa de cooperação entre pesquisadores e profissionais de várias instituições e grupos de pesquisa, de diferentes áreas de atuação, para o enfrentamento da COVID-19 em populações indígenas e comunidades rurais entre Brasil, Colômbia e Peru.

A REDE TRANSFRONTEIRIÇA COVID-19, visa avaliar e compreender a situação epidemiológica como região, a partir de análises das situações de vulnerabilidade, o risco de espalhamento e sua interação com os diferentes cenários e contextos dos nossos povos indígenas e as comunidades rurais que habitam a região transfronteiriça amazônica.

A REDE TRANSFRONTEIRIÇA COVID-19 busca contribuir com ferramentas e informações técnicas, científicas e acadêmicas, úteis para agilizar o fluxo de informação aos povos indígenas e a tomada de decisões dos diferentes atores e a sociedade civil, nos diferentes níveis de organização, para o enfrentamento da COVID nos seus territórios.

Por isso, A REDE TRANSFRONTEIRIÇA COVID-19 cria este repositório onde se encontram os documentos produzidos e as ações de prevenção e intervenção para o enfrentamento do COVID-19 em populações indígenas e comunidades rurais entre Brasil, Colômbia e Peru, que melhorem as condições de vida e saúde das populações amazônicas.

Para conhecer mais sobre esse trabalho, clique aqui.

 

Observatório dos direitos indígenas no Ceará


Em meio ao cenário de crise humanitária com a pandemia do novo coronavírus, o ODI está convergindo seus esforços e recursos, no momento, para um projeto que visa a mapear a questão pandêmica entre povos indígenas no estado do Ceará. Este projeto tem natureza coletiva e inter institucional, por meio de parcerias entre o GEPE-UFC, o GEPE-UECE, o GEPI-UNILAB, o LAPA-UFPB, o PET-POTIGUARA-UFPB, o NEPE-UFPE e pesquisadores de outras instituições públicas.

Para conhecer mais sobre o projeto, clique aqui.

 

A Rede de Monitoramento de Direitos Indígenas em Pernambuco (REMDIPE)

 

A Rede de Monitoramento de Direitos Indígenas em Pernambuco (REMDIPE), têm na presente iniciativa, o objetivo de fortalecer e fomentar as inúmeras redes de solidariedade surgidos no combate e prevenção ao Covid-19 nos povos indígenas.

Nossa rede de solidariedade propõe promover inicialmente duas principais ações. A primeira delas, é visibilizar as situações das terras indígenas de Pernambuco em tempos da pandemia por meio de boletins semanais, com informações de cada região. Para aprofundar nosso estudo, elaboramos questionários para compor um diagnóstico sobre as diferentes situações locais de cada território, suas demandas e necessidades; A segunda, é apoiar e promover campanhas de levantamento de recursos financeiros, promovida pelas organizações indígenas., para à aquisição Equipamento de Proteção Individual (EPI’s) , itens de higienização, alimentos, entre outras coisas, para garantir o bem viver das famílias indígenas enquanto durar a incidência da doença.

A nossa campanha de arrecadação, junto com a nossa rede, é promovida pela: Comissão de Professores/as Indígenas em Pernambuco (COPIPE), Comissão de Juventude Indígena em Pernambuco (COJIPE) e Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME).

Para conhecer mais sobre o trabalho dessa rede, clique aqui.

 

Monitoramento do COVID-19 em terras indígenas no Mato Grosso


O mapa do plano emergencial Covid Fora das Aldeias revela territórios das etnias kisêdjê, kayapó, nambikwara, xavante, bororo, tapirapé, paresi e cinta larga, próximos a cidades com números que variam de 1 a 51 casos confirmados da doença.

Operado integralmente dentro da plataforma ArcGIS, o mapa mostra a proximidade entre os casos confirmados e as aldeias indígenas do estado, que é o segundo com o maior número de áreas consideradas sob sério risco no país.

Para conhecer mais sobre o projeto, clique aqui.

Recém-Nascido Yanomami, 0

Yanomami
Testemunho de Remo Yanomami-13 de maio de 2020, coletado e traduzido pela Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana.

 

Remo e Zita Rosinete são da comunidade Nara Uhi, na região do Rio Catrimani, Terra Indígena Yanomami – Roraima. Rosinete teve um parto prematuro (idade gestacional foi estimada em sete meses) e o filho do casal faleceu com dificuldades respiratórias e suspeita de Covid-19. Dias depois de ter dado este relato, Remo e sua esposa ficaram sabendo que o corpo do bebê estava no necrotério do hospital e que deveria ser enterrado em Boa Vista, pois sua morte foi declarada como suspeita de Covid-19. E assim foi feito, pois em um caso como este o corpo não poderia ser levado à Terra Indígena Yanomami devido ao alto risco de contaminação. Já se passou um mês desde o parto, Rosinete já recebeu alta do tratamento, mas o casal ainda está na Casa de Apoio à Saúde Indígena (CASAI) de Boa Vista, um dos locais onde muitos Yanomami se infectaram com Covid-19. Aguardam um voo da SESAI para retornar à comunidade. A seguir, o relato.

Foi assim que aconteceu. Primeiro, o xamã André apresentou os sintomas de Covid. Ele é mais velho, foi o primeiro a adoecer. Então, Miguel fez xamanismo para curar o pai e também adoeceu. Um dia depois que Miguel começou a se sentir mal, ele foi caminhando até o posto de saúde na Missão Catrimani. A terceira pessoa a adoecer na nossa comunidade foi minha mulher, Zita Rosinete, que estava grávida.

Estávamos na nossa comunidade, que se chama Nara Uhi, quando ela começou a se sentir mal. Teve tosse, diarreia, febre, dor de cabeça, dor no peito e muita dor na barriga. Os xamãs não fizeram trabalho para ela, porque ficaram com medo de adoecer, já que essa doença é muito forte. Eles já sabiam disso.

No dia seguinte, depois que a Zita Rosinete teve febre, caminhamos até o posto perto da Missão. Eu fiquei muito triste lá. A Rosinete estava muito mal, desmaiou três vezes. Estava muito fraca e com muita febre. No dia 27 de abril, fomos removidos de avião da Missão Catrimani para a maternidade em Boa Vista. Quando chegamos no hospital, ela desmaiou de novo e eu fiquei segurando ela… então, talvez eu tenha Covid dentro de mim. Mas eu fiz o exame pelo nariz e pela boca, deu negativo.

Minha mulher estava com muita dificuldade de respirar, estava muito fraca e quase morreu! E eu perguntei para o médico: “Será que ela vai morrer?”. “Não. Ela está um pouco forte por dentro ainda”, disse. Hoje ela está bem, mas eu fiquei com muito medo quando vi na internet e no facebook sobre essa doença! Na maternidade, nos colocaram para dormir separados de outras pessoas. Ela fez o exame no dia 28 de abril e depois de cinco dias chegou o resultado positivo para Covid-19.

Meu filho morreu. No dia 28 mesmo, no dia em que nasceu, ele morreu. Nasceu de manhã e à tarde morreu. Zita Rosinete estava muito fraca, mas estava um pouquinho forte ainda, porque ela não queria morrer. Se tivesse pensado em morrer, morreria. Ela teve um parto vaginal.

Eu não vi meu filho. A Zita Rosinete fez nascer o bebê, os médicos pegaram e disseram: “Levem para o hospital, para a UTI”. Então, ele morreu. Eu fiquei muito triste! Eu estou triste ainda. O médico não disse porque ele morreu. Só me perguntou: “Ei, você é papai?”. “Sim, eu sou papai”. “Desculpa aí, seu filho morreu. Ele estava com muita dificuldade de respirar e por isso morreu”. Ele morreu acho que às 14hs, mas não sei… Só tem no documento. Eu disse para o enfermeiro: “Eu quero visitar meu filho!”. Mas ele disse: “Espera, só depois. Os médicos estão examinando ainda”. Aí eu esperei, esperei, esperei e depois chegou informação: “Seu filho morreu de dia”. O corpo, acho que está lá ainda na UTI, eu não sei onde está. Na CASAI, eles também não disseram onde está o corpo do meu filho. Eles não dão informação sobre onde está o corpo. Eu tenho um papel que fala sobre o meu filho [Declaração de nascido vivo] e aqui na CASAI a enfermeira perguntou: “Onde é que está o seu filho?”. Eu disse: “Morreu!”. “Onde está o documento falando que ele morreu no hospital maternidade no dia 28?”. “Huu… não sei! Os médicos não me deram!” Eu estou muito triste, mas eu preciso conversar sobre isso com a coordenação da CASAI, mas não tem como me aproximar deles. Como é que eu vou falar? Então, a CASAI está muito bagunçada!

Fizemos a quarentena no hospital (14 dias) e estamos agora na CASAI fazendo quarentena ainda… Aqui na CASAI só agora é que tem outras pessoas perto da gente. Estamos em uma casa com três pessoas: uma mulher do Palimiu, outra sanöma e um homem sanöma. Eu estou muito triste, porque estou na CASAI. Aqui tem muita doença. Eu quero voltar para a minha comunidade!”

Obs.: Fotos de pessoas menores de idade, vítimas fatais da Covid-19, serão ilustradas com trabalhos de artistas indígenas. Ver autoria em Fontes!

FONTES

Foto em Destaque por: Edgar Kanaykõ (Instagram: @edgarkanayko)

Fotos da Galeria: Edgar Kanaykõ; Reprodução//Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana

Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana
https://www.facebook.com/RedeProYanomamiYekwana/posts/114759750259090

Colaboração: Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana

Hilário Ab Reta Awe Predzawe, 43

Xavante

Homenagem escrita* por Diane Valdez, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás.


Hilário Ab Reta Awe Predzawe, 43 anos, morador da Aldeia Xavante N. S. de Guadalupe, em Barra do Garças, Mato Grosso, morreu na madrugada de 18 de junho de 2020, vítima do descaso governamental que permitiu a chegada do Coronavírus em sua comunidade. Era aluno do 5º período do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Sua tia morreu há pouco mais de uma semana vítima do mesmo descaso, a mãe e seus dois irmãos, seguem contaminado pelo vírus, assim como outros Xavantes e outras pessoas de etnias indígenas de todo o Brasil.

Hilário entrou na UFG, pelo sistema de cota para indígenas, no ano de 2018. Chegou com o já conhecido atraso histórico de acesso dos povos originários no ensino superior, ainda que a UFG seja uma das universidades públicas que tem buscado cumprir com o direito de povos indígenas ao ensino universal, o acesso e a permanência ainda sofrem de fragilidade.

A trajetória de Hilário, na UFG, não se limitou às dificuldades ocasionadas pela pobreza, como muitos de nossas/os alunas/os enfrentam. A academia era um outro mundo, distante de sua comunidade, não só em quilômetros, como também em movimentos culturais, sociais e políticos. Talvez essa distância, o fazia um aluno reservado e observador, sem abrir mão da seriedade e interesse pelo conhecimento.

Era umas das lideranças de seu povo, portanto, sabia da responsabilidade que assumia frente a comunidade, ele seria um professor, um educador de seu chão, de sua gente. Hilário trabalhava em uma escola, com o formato de um Tatu Bola, na sua aldeia, trabalhava na área de serviços gerais, em breve voltaria como Professor!

No primeiro ano de curso, Hilário, na desconfiança de seu silêncio indígena, que não significava submissão, tentava se inserir no mundo acadêmico. Veio um tempo, que largou tudo e voltou para a aldeia, não por opção dele, mas por opção deste desgoverno que é incansável na destruição de direitos dos povos originários.

O Ministério da Educação e Cultura, suspendeu todas as bolsas de permanência para a população indígena e quilombola. Um grupo de alunas e professoras se juntaram, arrecadaram dinheiro e o trouxeram de volta para a Faculdade. Foi feita uma mobilização de docentes e discentes sensibilizados e a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da UFG, cumprindo seu importante papel, disponibilizou uma bolsa e outros auxílios emergenciais.

Nessa ocasião, quando perguntado sobre o porquê de não falar nada dos problemas para colegas, e voltar para sua comunidade, Hilário disse que achava que ninguém sentiria falta dele.

No segundo ano, trouxe seu curumim para estudar em Goiânia, começou a trabalhar como intérprete na escola, acompanhando seu filho na dificuldade com a língua. Era visível seu orgulho de exercer a função de intérprete. Lutou e enfrentou as diferenças que separavam as culturas e, como muitos, guerreou como seus ancestrais, para não perder seu lugar de legítima conquista.

No início da Pandemia, que começou junto com o semestre letivo, Hilário resistiu em voltar para sua comunidade, tinha medo das aulas retornarem e ele não estar presente na Faculdade, isso aponta o lugar que a UFG ocupava em sua vida. Quando percebeu que seu povo não estava acreditando na letalidade do vírus, retornou para alertar todos sobre o perigo. A UFG, cumprindo seu papel de instituição pública, providenciou o transporte para seu retorno no Mato Grosso.

Em maio, informou para duas amigas, que sua comunidade precisava de cobertores, pois fazia muito frio, e seu povo estava adoecendo. Elas mobilizaram, imediatamente, uma Vakinha On Line, onde arrecadou-se pouco mais de três mil reais, no entanto, como o total da arrecadação demora para ser liberado, emprestaram dinheiro e compraram os cobertores de forma mais hábil, enviando-os dia seguinte.Os sintomas que atingia a comunidade, febre, falta de ar etc. já indicavam que era Coronavírus, no entanto, isso não foi motivo de interesse governamental, que poderia ter evitado o alastramento do vírus.

Ao apresentar os sintomas da doença, Hilário mostrou-se resistente em ir para o hospital, tinha dificuldade de aceitar o tratamento “dos brancos”. Acreditava nos rituais de seu povo, no tratamento natural que conhecia há tempos. Por outro lado, a histórica resistência dele, fazia todo sentido, pois sabemos como os povos indígenas são tratados neste país tão indígena que não se reconhece como indígena. Foi convencido a ir para o hospital e, na última conversa com as amigas em chamada por vídeo, estava muito escuro, e a família arrumou uma lanterna para as meninas verem o rosto dele, que disse para elas, em lágrimas, que estava somente suado, quando perguntado se estava com medo, disse que sim, que estava com muito medo.

A ida para o hospital foi acompanhado de longe pelas amigas, falavam sempre com a Assistente Social que afirmava que Hilário estava se recuperando, que receberia alta a qualquer momento. Nessa madrugada, ao pedirem informações sobre o amigo no hospital, alguém disse que alguém havia morrido, mas não sabia o nome. O nome de mais um número morto é Hilário Ab Reta Awe Predzaw, que deixou a mulher, filhos e todo seu povo Xavante.

O acesso dos povos indígenas ao ensino superior é recente, no entanto, é marcado por extrema coragem e resistência, pois o mundo acadêmico não é de todo um espaço acolhedor. Ainda que a dureza prevaleça na universidade, Hilário encontrou solidariedade e amizade na Faculdade de Educação, ainda que não seja uma solidariedade coletiva, foi construído uma rede de apoio, tanto de alunas/os, como também de docentes, isso pode ter aliviado sua dura estrada longe de seu chão.

Hilário não morreu porque “chegou a hora dele”, morreu por não ter o direito de ser mais um indígena, digno de necessários cuidados. Hilário, era um homem parte do “povo indígena”, um povo invisibilizado, injustiçado, espezinhado, humilhado e, odiado por este desgoverno.

Um povo com suas terras ameaçadas e roubadas pelo latifúndio, mortos por pistoleiros do agronegócio, ironizado e menosprezado por representantes deste desgoverno, ignorado por gente nativa que se acha descendente de europeus, machucados por todos que acham que universidade não é lugar de indígenas.

Não sei falar de fé, nem de ‘destino’, nem de coragem para aliviar o cansaço de um tempo incansavelmente dolorido. Ironicamente, para não dizer, funestamente, o tal ministro da educação, que afirmou odiar a expressão “povos indígenas”, ampliando seu descaso com a educação, revogou hoje [HOJE], (19/06) a portaria assinada pelo ex-ministro de educação, Aluísio Mercadante, que estabelecia a política de cotas para negros, indígenas e pessoas com deficiência em cursos de pós-graduação. Hilário, estaria fora da pós-graduação, se dependesse deste ser desumano.

Quando lanternas começaram a iluminar caminhos de direitos para esta população, no interior de nossas universidades públicas, ainda que timidamente, um furacão de perversidade em formato de governo, dá pontapés e pisa, moendo, as possibilidades de justiça. Feito bandeirantes, grupos genocidas a frente das decisões da nação, estimulam a morte em todos os formatos. Deixar que o coronavírus atue, sem controle, é a proposta de morte atual para os povos originários.

Como Hilário, temos medo, muito medo, mas agarremos as lanternas, e assumimos nosso lugar na defesa dos povos indígenas, não os condenando a escuridão, como muitos fazem.

Hilário Ab Reta Awe Predzaw presente!

 

*Com informações das alunas, companheiras de Hilário, da turma do quinto período de Pedagogia da Faculdade de Educação/UFG, Dorany Mendes Rosa e Raysa Carvalho.

FONTES

Foto em Destaque: foto enviada por Dorany Mendes Rosa.

Fotos da Galeria: fotos da turma da pedagogia UFG, enviadas por Dorany Mendes Rosa.

Colaboração: Érica Dumont / Enfermagem e FIEI – FaE, UFMG – Belo Horizonte/MG.

Amélia Huanaquiri, 89

Huanaquiri

Amélia Huanaquiri nasceu em 1931, em San Joaquín de Omaguas, em uma comunidade indígena às margens do rio Amazonas, entre Nauta e Iquitos. Por muitos anos, ela foi constrangida a não falar omagua, o idioma que aprendeu com seus avós. Seu marido, especialista em caçar “sajinos”, costumava advertir quando a ouvia falar a língua: “_ Não fale assim, eu disse, eles vão tirar sarro de você!”. Os dois deixaram San Joaquín – a cidade onde cruzaram os olhos pela primeira vez – e foram morar em Iquitos com seus filhos. Desde então, em público, Amélia permanecia calada em omagua e muito eloquente em espanhol, mas secretamente continava falando com si mesma como faziam seus ancestrais. Sua memória manteve viva as histórias que seus avós lhe contavam quando criança: histórias sobre mundos cheios de “tunches”, plantas que curavam a tosse e a varíola, demônios de rios que roubam o espírito dos homens.

Recentemente, aos quase noventa anos, um grupo de linguistas procurou Amélia com um pedido incomum, queriam escutar aquela língua que, por tanto tempo, ela havia sido aconselhada a esquecer. Amélia não sabia, mas as palavras que aprendera quando criança estavam morrendo e apenas ela, e outras três ou quatro pessoas, guardavam este saber na terra.

As pessoas, vindas de longe, escutavam Amélia como mestra, mas para ela, falar sobre sua vida e comunidade, era simples e significava reencontrar com suas lembranças. Ela podia passar horas contando as piadas de suas tias omaguas ou explicando um termo de que não tinha tradução exata em espanhol, como “aisɪkapashiru” (pessoa muito feia), “asɨrɨka” (descer pelo rio) ou “amiastaka saʃimay” (uma dor insuportável). Assim ela passou os últimos meses de sua vida gentilmente emprestando as suas memórias à especialistas dedicados a sistematizar o alfabeto omagua. Com sua serenidade imperturbável, Amélia protegeu não apenas dezessete letras de uma língua, mas também a memória de um povo inteiro.

Embora muitos a vissem como a grande sábia de uma cultura, em casa ela era a avó que rezava de joelhos todos os dias às cinco da tarde, que caminhava horas pelas ruas de Iquitos para visitar seus sobrinhos, que cozinhavam patarashcas, mazamorras de banana com mandioca e sua bebida favorita “el chapo de la Selva”. “Ela era tão ativa que todos pensávamos que ela viveria mais de cem anos”, lembra Zoila Huanaquiri, sua sobrinha mais próxima. Uma das últimas vezes que viu sua tia, Amelia ensinou-lhe uma palavra em omagua, “Yatɨma (enterro)”, disse ela, e acrescentou em voz baixa, como se dissesse um segredo:  “_Quando eu partir, quero ser enterrada na minha cidade e com meus avós.”.

Faleceu no dia 10 de maio de 2020, junto da sua irmã e seu filho mais novo, que morreram dias antes, todos com sintomas da COVID-19.

 

Relato enviado por Carlos Huanaquiri Gongora e sua família, traduzido e organizado por Érica Dumont.

FONTES

Foto de Destaque: Reprodução// Loreto Informa News

Fotos da Galeria: Reprodução// Loreto Informa News; Zachary O’Hagan

Colaboração: Érica Dumont / Enfermagem e FIEI – FaE, UFMG – Belo Horizonte/MG.