Amélia Huanaquiri, 89

Huanaquiri

Amélia Huanaquiri nasceu em 1931, em San Joaquín de Omaguas, em uma comunidade indígena às margens do rio Amazonas, entre Nauta e Iquitos. Por muitos anos, ela foi constrangida a não falar omagua, o idioma que aprendeu com seus avós. Seu marido, especialista em caçar “sajinos”, costumava advertir quando a ouvia falar a língua: “_ Não fale assim, eu disse, eles vão tirar sarro de você!”. Os dois deixaram San Joaquín – a cidade onde cruzaram os olhos pela primeira vez – e foram morar em Iquitos com seus filhos. Desde então, em público, Amélia permanecia calada em omagua e muito eloquente em espanhol, mas secretamente continava falando com si mesma como faziam seus ancestrais. Sua memória manteve viva as histórias que seus avós lhe contavam quando criança: histórias sobre mundos cheios de “tunches”, plantas que curavam a tosse e a varíola, demônios de rios que roubam o espírito dos homens.

Recentemente, aos quase noventa anos, um grupo de linguistas procurou Amélia com um pedido incomum, queriam escutar aquela língua que, por tanto tempo, ela havia sido aconselhada a esquecer. Amélia não sabia, mas as palavras que aprendera quando criança estavam morrendo e apenas ela, e outras três ou quatro pessoas, guardavam este saber na terra.

As pessoas, vindas de longe, escutavam Amélia como mestra, mas para ela, falar sobre sua vida e comunidade, era simples e significava reencontrar com suas lembranças. Ela podia passar horas contando as piadas de suas tias omaguas ou explicando um termo de que não tinha tradução exata em espanhol, como “aisɪkapashiru” (pessoa muito feia), “asɨrɨka” (descer pelo rio) ou “amiastaka saʃimay” (uma dor insuportável). Assim ela passou os últimos meses de sua vida gentilmente emprestando as suas memórias à especialistas dedicados a sistematizar o alfabeto omagua. Com sua serenidade imperturbável, Amélia protegeu não apenas dezessete letras de uma língua, mas também a memória de um povo inteiro.

Embora muitos a vissem como a grande sábia de uma cultura, em casa ela era a avó que rezava de joelhos todos os dias às cinco da tarde, que caminhava horas pelas ruas de Iquitos para visitar seus sobrinhos, que cozinhavam patarashcas, mazamorras de banana com mandioca e sua bebida favorita “el chapo de la Selva”. “Ela era tão ativa que todos pensávamos que ela viveria mais de cem anos”, lembra Zoila Huanaquiri, sua sobrinha mais próxima. Uma das últimas vezes que viu sua tia, Amelia ensinou-lhe uma palavra em omagua, “Yatɨma (enterro)”, disse ela, e acrescentou em voz baixa, como se dissesse um segredo:  “_Quando eu partir, quero ser enterrada na minha cidade e com meus avós.”.

Faleceu no dia 10 de maio de 2020, junto da sua irmã e seu filho mais novo, que morreram dias antes, todos com sintomas da COVID-19.

 

Relato enviado por Carlos Huanaquiri Gongora e sua família, traduzido e organizado por Érica Dumont.

FONTES

Foto de Destaque: Reprodução// Loreto Informa News

Fotos da Galeria: Reprodução// Loreto Informa News; Zachary O’Hagan

Colaboração: Érica Dumont / Enfermagem e FIEI – FaE, UFMG – Belo Horizonte/MG.