Aldevan Brazão Elias, 46

Baniwa

Aldevan Brazão Elias, 46 anos, indígena do povo Baniwa, do Alto Rio Negro, faleceu de Covid-19, no dia18/04/2020. Ele era agente de combate às endemias da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS), da Secretaria Estadual de Saúde do Amazonas (Susam), defensor da saúde indígena, colaborador de cientistas e escritor.

Aldevan Baniwa, como era mais conhecido, segundo a agência de notícias “Amazônia Real”, nasceu na comunidade Castanheiro, no município de Santa Isabel do Rio Negro (AM). Ele tinha uma expressiva atuação na comunidade acadêmica, colaborando com produções científicas de pesquisadores. Foi casado com a antropóloga Ana Carla Bruno, colunista da Amazônia Real e professora da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), com quem teve duas filhas. Aldevan e Ana Carla são dois dos autores do livro “Brilhos na Floresta”, junto com os pesquisadores Noemia Kazue Ishikava e Takehide, além da ilustradora Hadna Abreu.

A cineasta Maya Da-Rin, que fez o lindo filme “A Febre” (2019), rodado em Manaus, escreveu a seguinte palavra em sua homenagem: “Aldevan foi uma das pessoas mais generosas que conheci. Em 2017 nos acompanhou em muitas das incursões que fizemos para a pesquisa de elenco de ‘A Febre’. Gostava de estar junto, conversando, partilhando ideias. A partir de então sempre ficamos em contato. Lembro dele explicando para os guardas o que era caxiri, quando fomos parados em uma blitz da lei seca ao voltar de uma comemoração do abril indígena, há exatamente três anos. Lembro das frutas que ele me apresentou, dos livros que me mostrou, da peixada que fizemos na sua casa logo antes das filmagens. A última vez que nos falamos foi no dia 20 de março. Aldevan era agente de saúde e estava trabalhando na linha de frente. Perguntei como eles estavam se protegendo. Ele me respondeu dizendo que ‘nós da saúde não podemos ficar em casa, temos que trabalhar no atendimento aos casos suspeitos’. Aldevan nunca pensou só em si. Que a sua estrela siga brilhando como uma flecha.

 

Há várias memórias: um vírus, uma história, muitas trajetórias (Ana Carla Bruno, Kaina e Win – Esposa e filhas de Aldevan Baniwa, em 18/04/2020)


1991, tranquei o curso de história e fui “ser professora” (aliás aluna da vida indígena) dos Waimiri Atroari, na Aldeia Alalaú (atentem para esta aldeia). Para chegar na aldeia, era preciso passar pela casa do senhor Valentin Elias (servidor da FUNAI), que carregava um tambor cheio de gasolina nas costas.

Entre 1991 a 1993, aprendi com os kinja um pouquinho de sua cultura e língua. Fui para roça, pescarias, festas, coleta de frutas, vi gente nascer, vi gente morrer, fiz amigos e aprendi a respeitar o modo de ser indígena.

Em 1996, retornando para área Waimiri Atroari, também no rio e aldeia Alalaú, conheci Aldevan Elias (Aldevan Baniwa). Tímido, calado, centrado em seu trabalho. Não lembro bem como começou, mas ao escutá-lo tocar no violão músicas de Legião Urbana e Engenheiros do Havaí fui me encantando e começamos a namorar. Entre Manaus e Belém (nesta época, eu era bolsista do Museu Goeldi), através de muitas cartas e raríssimos telefonemas (afinal Aldevan passava meses na aldeia), continuamos nosso relacionamento.

Em 1997, Aldevan foi conhecer meus pais e minha família no Recife. Olha, fez um sucesso!!! Todo mundo queria pegar em seu cabelo e meu pai chegou a dizer que queria ser o Aldevan. Lá deu seu primeiro mergulho no Mar. Em março de 1998, casamos. Na nossa pequena comemoração estavam alguns Waimiri Atroari e amigos do Programa Waimiri Atroari. Três dias depois, viajo para os Estados Unidos para iniciar o mestrado. Novamente, ficamos 9 meses separados e através de cartas sabíamos um do outro.

Dezembro de 1998: Aldevan chega em Tucson/AZ (o Amazonas indígena americano – terra dos Navajo, Hopi, Tohono O´odham, entre outras etnias) sem saber falar o verbo to be. Fácil? Não, não foi!!! Ele sentia falta da farinha, do rio, da família. Mas logo se entrosou com os brasileiros, os mexicanos, e não demoraria muito para o inglês dele ficar melhor que o meu. Sem sombra de dúvida, sua pronúncia era melhor que a minha!!! Sem vergonha, logo vieram as peladas com muitos americanos. Aprendeu a lidar com Adobe (material utilizado nas casas no Arizona), construindo algumas casas. Também, logo descobriu um rio no Mount Lemmon (localizado na Floresta Nacional de Coronado, ao norte de Tucson) e começou pescar trutas. Nunca comi tanta truta.

Não sabia andar de bicicleta e logo aprendeu na bicicleta que eu ia para universidade. Depois, comprou uma bicicleta de corrida e corria solto nas avenidas de Tucson. Também aprendeu a dirigir (olha Aldevan, até que você tentou me ensinar, mas não consegui aprender…)

Foram 5 anos em Tucson de muita batalha (você trabalhou como jardineiro, cuidador de um colega professor que tinha ELA, e como esquecer que você também atuou num documentário), cumplicidade e aprendizagem. Lá nasceram Kaina (2001) e Wina (2002). No parto da Kaina você quase desmaiou quando viu a agulha da Epidural. Mas o momento mais aldevaniano (quem o conheceu, entenderá) foi no nascimento da Wina. Ele cismou que queria que a Kaina participasse do parto. E claro, não funcionou. Kaina queria brincar com os instrumentos médicos. A médica num olhar fulminante falou para ele: retire esta criança daqui! E ele quis argumentar que, numa família indígena, os irmãos poderiam estar por perto…. Kaina herdou suas habilidades manuais. E Wina seu jeito sarcástico e teimoso.

No dia da minha defesa de doutorado, ele dizia com maior satisfação minha mulher é doutora em língua e cultura. Em agosto de 2003, voltamos os dois desempregados para o Brasil. Sem o apoio das nossas famílias não teríamos dado conta. E assim ficamos casados até 2016. O casamento acabou, mas a amizade e o respeito mútuo continuaram. Afinal tínhamos uma história e duas filhas. A cada conquista das meninas, ele vibrava, a cada visita de minha família e de amigos, ele estava presente. E, em 2019, virou escritor através da parceria com nossa amiga Noêmia.

Confesso, sempre foi um tabu para mim fazer pesquisa no Alto Rio Negro. O Alto Rio Negro, para além de um universo linguístico cultural fascinante, significa FAMÍLIA: é dona Joana (Tukano) e Sr. Emílio (Baniwa), avós das minhas filhas. São as tias e tios das minhas filhas, são os zilhões de primos. São as histórias do cotidiano contadas no sítio da Joanita, na ida para sua roça. É o peixe assado em Santa Etelvina. Vocês lembram do Sr. Valetin Elias, no ínicio do texto? Ele é tio do Aldevan por parte de pai (mas não época, eu não imaginava que casaria com seu sobrinho).

A COVID-19 tirou você de nossas vidas, mas não de nossas memórias e histórias. Tínhamos muitos planos para nossas filhas, não é??? Fique tranquilo pescando lá na Ilha da Oscarina (no Alto rio Negro) que eu cuidarei das meninas. Nestes últimos dias tenho dito para elas que você virou encantado.

Quero agradecer todos amigos do PWA, de Tucson, de Manaus, de Belém e do Recife pelas mensagens e lindos textos, pelo cuidado, pelo carinho…

Ana, Kaina e Wina.

 

Uma Carta (Ana Carla Bruno, Kaina e Win – Esposa e filhas de Aldevan Baniwa, em 18/04/2021)

Oi, eu não sei se você está pescando lá pelas bandas da Ilha Oscarina (Rio Negro), se você anda caçando ou andando de bicicleta. Por onde está…

Nas “internets” e “redes sociais” deste outro plano de encantamento, não sei se você está acompanhando o que está acontecendo pelas bandas de cá!!

As meninas e eu sempre falamos de você: quando assistimos a um filme; quando comemos peixe assado ( e claro, nenhum é igual ao seu); quando vemos alguma postagem sarcástica nas redes sociais; e sempre quando a campanhia toca por mais tempo do que deveria ( pois você tinha mania de ficar segurando quando vinha nos visitar).

Apesar do cansaço mental, da sensação de impotência e das dores das perdas ( e olha, foram muitas), estamos bem!!! MAS o Brasil, o Brasil:

– Você ainda estava entre nós quando o Mandetta saiu do ministério. Mesmo neste cenário de pandemia, já estamos com o quarto Ministro da Saúde;
– O perfil dos doentes de covid mudou, os pacientes agora são mais jovens;
– Mesmo depois de 1 ano, continuanos usando máscara, mas ainda existem pessoas que não acreditam na importância de seu uso;
– Ainda não podemos aglomerar, abraçar ou encontrar as pessoas que gostamos;
– Perdão, as meninas e eu ainda não conseguimos abraçar Sr. Emílio, Dona Joana Brazao, nossos sobrinhos(as), Tania Elias, Maria Do Socorro Elias, Magson Jesus.
Encontrei Andre Brazao e Lindomar Brazão na comunidade indígena Parque das Tribos, por meio de um projeto de pesquisa que estou participando.

Vi Solange Brazao e nos abraçamos com os olhos quando Dona Joana precisou ser internada quando Manaus sufocava por falta de oxigênio.

Sim, no dia 14 de Janeiro, aqui em Manaus, vivenciamos um cenário de horror… pacientes de covid morreram por falta de oxigênio nos hospitais. E agora, tristemente o Brasil todo está passando por situações similares…

Hoje, Manaus vive uma “amnésia coletiva”, parece que a pandemia acabou… e as pessoas insistem nas baladinhas. Por outro lado, os profissionais da saúde continuam tentando salvar vidas neste cenário caótico… mas saiba, eles estão exaustos e precisando de afeto e respeito.

Como eu poderia esquecer??? A Ciência e os cientistas venceram o tempo!!! Ao mesmo tempo, ambos sofrem com o negacionismo e as fake news. Mas temos VACINAS!! Mesmo com um número pequeno, devido a um “probleminha de gestão e diplomacia”. Apesar disso, o sistema SUS (para o qual você trabalhava) está dando seu melhor.

Kaina, Wina e eu, logo que você se encantou, fizemos 1000 tsurus de origami pela cura do mundo. Infelizmente, estamos vivenciando uma segunda onda:

– Atualmente, em média, temos 3 mil mortes por dia;
– Já atingimos mais de 370 mil mortos pela doença. Triste não é?
– Agora no domingo de Páscoa, Solange, Sr.Emílio e Magson fizeram uma surpresa: fizeram peixe e beiju para nós. Matamos a saudade de seu peixe. (Penso que cozinhar para o outro é uma demonstração de afeto)
– Sim, como poderia esquecer? O livro “Brilhos na Floresta” já foi traduzido para Baniwa, uma das línguas Yanomami, Kaingang e Guarani, além de sua versão em Nheengatu e da tradução para Tukano, que você chegou a ver…
Você conhece bem a nossa amiga Noemia Kazue Ishikawa, ainda estamos fazendo estripulias, pensando na década das Línguas Indígenas do Mundo, que será comemorada entre 2022 e 2032. Mas saiba, o grupo de pesquisa “Cogumelos da Amazônia.a” sente sua falta.

Não importa onde você esteja, suas filhas e eu esperamos que você esteja bem neste plano dos encantados.

Ana, Kaina e Win

FONTES

Foto de Destaque: Reprodução// BNCAmazonas

Fotos da Galeria: Amazônia Real; Acervo da Família; Steven Bird; Acervo da Família; (IDEM); (IDEM); (IDEM); ISA-Sociambiental

Amazônia Real
https://amazoniareal.com.br/aldevan-baniwa-que-denunciou-a-falta-de-testes-para-covid-19-morre-em-uti-de-manaus/

BNC Amazonas
https://bncamazonas.com.br/rapidinhas/agente-fmt-fvs-indigena-baniwa/aldevan-baniwa-1-2/

ISA- SocioAmbiental
https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/uma-estrela-baniwa-a-brilhar-no-ceu

Steven Bird
http://www.stevenbird.net/blog/nhengatu-a-timely-lesson-in-language-preservation